Não é de agora nem é novidade a política estar cada vez mais subordinada a estratégias de marketing. As próximas eleições no Reino Unido são um sinal claro dessa deriva. Mais que a campanha eleitoral, os debates televisivos o que verdadeiramente conta é a «fábrica de memes» dos conservadores a funcionar 24 horas por dia no universo digital, dirigida por David Cummings, um australiano especialista nessas estratégias, autor das mais bem conhecidas ideias da campanha no referendo pela saída da União Europeia, como o slogan [Let’s] Take Back Control (Agarre novamente o controlo), numa referência clara ao uso do controlo remoto dos aparelhos domésticos e das playstations e do telefilme The Uncivil War, que muito influenciaram o voto. É um acenar sem pausas à empatia e não à racionalidade das pessoas. A campanha online dos conservadores iniciou-se ainda antes de estar decidida a ida às urnas. As referências à cultura popular multiplicam-se. É o jogo do Monopólio, A Guerra dos Tronos, o recurso constante a anúncios que não estão ligados directamente a partidos políticos mas à publicidade de, por exemplo, KFC e McDonalds, enviesadamente utilizados para aproveitar a memorização já produzida. Por cá isso também foi decalcado e utilizado, não por acaso, pela Iniciativa Liberal para, numa linguagem acessível, dar uma imagem falsa da realidade. Percorra-se a galeria de imagens dos seus cartazes para se percepcionar esse relacionamento mimético com o outro lado do Canal da Mancha, o que deixa muitas questões no ar.
«a visão cínica do mundo político nas notícias e comentários, [...] abre as portas aos populismos, cada cor seu paladar, alimenta a vox populi contra os políticos, o aparelho de Estado, o trabalho da acção parlamentar, fertilizando processos de demagogia, alimentando uma opinião pública que não sabe mas acha que»
Tudo isto é feito com uso intensivo das redes sociais, Facebook, Instagram, Twitter e do WhatsApp, onde se investem milhões em publicidade com anúncios políticos online em que os utilizadores são instados a fornecer o seu e-mail e localização, uma evidente tentativa de alargar a base de dados de eleitores do partido e recolher dados dos eleitores através das redes sociais. Nada disto é novo. Nos EUA são uma vulgaridade bem utilizada por Obama ou Trump, com resultados reais que correspondem aos investimentos brutais em spots publicitários pagos com as contribuições de grandes grupos económicos, que lhes dão apoio variável em função das expectativas criadas à expansão dos seus negócios. Há ainda que ter memória das revoluções da Primavera Árabe e da campanha de Bolsonaro, à boleia da difusão colossal e da velocidade estrastoférica desses meios tecnológicos, onde a propaganda se associa às fake news e ao que é fake para defraudarem a realidade com um poderio imenso, influenciando não só os utilizadores intensivos das redes sociais como os utilizadores comuns, sejam jornalistas, analistas e académicos, muitos deles predispostos a absorverem essas mensagens, para se verificar como a informação assim produzida é influente.
Tudo isto acontece porque nos sistemas representativos a publicidade, directa e indirecta, associada à descarada manipulação da comunicação social sempre ao serviço do poder dominante, tem enorme peso na decisão de voto. O exemplo mais exemplar, passe o pleonasmo, é o de Itália, onde Berlusconi recolheu as maiores votações nas regiões em que o seu poder televisivo era esmagador mas também no triunfo de Macron sustentado na pseudo-novidade de um partido mais que velho e relho nas suas raízes.
Isto acontece porque a apologia da democracia tende progressivamente a confundir-se com a dos partidos tanto mais quanto menos a realidade corresponde ao ideal democrático, o que provoca uma contínua degradação da política e do pessoal político, a degradação do Estado nas suas componentes políticas, profissionais e técnicas, o descrédito da política e dos políticos, o desencantamento com a política que os media e as redes sociais produzem com contumácia, propondo uma visão cínica do mundo político nas notícias e comentários, o que abre as portas aos populismos, cada cor seu paladar, alimenta a vox populi contra os políticos, o aparelho de Estado, o trabalho da acção parlamentar, fertilizando processos de demagogia, alimentando uma opinião pública que não sabe mas acha que.
É o caldo de cultura de um sistema democrático representativo em que há uma crescente indiferenciação ideológica e programática entre os partidos, de esquerda, do centro e de direita, que se integram completamente nesse sistema. Que reduzem a sua acção e medem a sua representatividade quase exclusivamente pelos resultados da competição eleitoral, em que a democracia deixou mesmo de ser o lugar da luta de classes pacífica como era proclamada pelos pioneiros revisionistas sociais-democratas. Isto também abre caminho aos populistas, de direita e de uma autoproclamada esquerda, que negam as evidências de que a luta de classes existe, não parou e que há, de facto, políticas de direita e de esquerda.
«É o caldo de cultura de um sistema democrático representativo em que há uma crescente indiferenciação ideológica e programática entre os partidos de esquerda, do centro e de direita que se integram completamente nesse sistema. Que [...] abre caminho aos populistas, de direita e de uma autoproclamada esquerda, que negam as evidências de que a luta de classes existe, não parou e que há de facto políticas de direita e de esquerda»
Surgem novos partidos useiros e vezeiros nas profissões de fé contra os partidos tradicionais enquanto se organizam tal qual estes. Não são instrumentos ao serviço dos eleitores, em particular de quem os elegeu, são uma finalidade em si-próprios, que disfarçam com declarações altissonantes como as de Joacine Katar Moreira que, chegada à Assembleia da República (AR), sente-se tão ungida, tão excepcional que messianicamente explica à plebe ignara que «Hoje estamos a inaugurar uma nova era e é, especialmente, uma era em que estes ambientes que há uns anos olhávamos enquanto ambientes completamente orientados para a mesma elite política, económica, financeira e por aí a fora, é hoje em dia, um ambiente que se abre e que é, simultaneamente, a evolução do ambiente institucional português e um sinal de maturidade política». Para a deputada do Livre há uma AR antes-Joacine e uma AR pós-Joacine, só lhe falta propor um novo calendário em substituição do gregoriano para assinalar esse facto magno que só existe na sua cabeça. Tem o desplante de proclamar isso porque bem sabe que o ridículo não mata e declarações desse jaez são um golpe publicitário sublinhado pelas saias do seu assessor. Mesmo para todos os que se estão marimbando para a sua gaguez e para as vestes provocatórias do seu assessor, para todos os que repudiam a infame campanha de que foi e é alvo, é evidente que o que Joacine Katar Moreira persegue, e iniciou em grande estilo, é uma campanha de marketing que ilude as propostas programáticas do Livre em deriva acentuada para a direita por uma radicalização das políticas identitárias polvilhadas de afirmações patéticas como a de «não se pode falar de salário mínimo nacional sem se falar de amor» (...) «política sem amor é comércio», um linguarejar em linha com os gouchas que preenchem os espaços televisivos dos entretenimentos do povo dá cá o pé, toma lá o pé.
Não está isolada. Tinha sido precedida pelo PAN e está bem acompanhada pela Intervenção Liberal e pelo Chega, que tem a vantagem sobre os outros de congregar os saudosos do fascismo, os patrioteiros nacionalistas, os caceteiros que andavam tresmalhados. Têm um traço comum: as políticas identitárias dos mais diversos matizes que os separam à superfície e os unem nas profundezas. Jogam todos e competem todos nos golpes de marketing e nos adubados territórios das redes sociais às ruas, apoiados nos media que rapidamente lhes ofereceram e oferecem um tempo de antena que pouco ou nada reflecte a sua representatividade, com o Chega a chegar-se à frente por via dos comentários desportivos.
Se o marketing e a publicidade já ocupavam espaço crescente em substituição das propostas ideológicas, diluindo-as até as tornar quase residuais nos partidos tradicionais, agora tornaram-se dominantes nos novos partidos, como o Chega, que são de facto organizações eleitorais e eleitoralistas sem definição, com a mobilização ideológica reduzida ao alinhamento de slogans apontados à conquista do voto, à politização desses slogans em melhores ou piores urdidas campanhas publicitárias, o que é um grave retrocesso político-ideológico até porque as lutas sociais e políticas não se esgotam nos momentos eleitorais.
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