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Instalar uma cerca sanitária em torno da renda não-habitacional é um absurdo!

O recentemente publicado regime excecional do arrendamento urbano é um erro económico, um fator de injustiça social e uma ferida na capacidade de redinamização da cidade no período pós-pandemia.

Loja de rua em LisboaCréditos / Intercâmbio Portugal

1. A par de disponibilização de empréstimos com taxas de juro positivas (e com spreads com uma dimensão escandalosa no atual contexto), embrulhados em cargas burocráticas pesadas e demoradas, a opção do governo de defender o pagamento integral das rendas não-habitacionais constitui uma medida de política económica de emergência com um elevado poder letal para a capacidade de resistência das micro e pequenas empresas aos efeitos económicos da pandemia. A questão da renda não-habitacional afeta, sem dúvida, a camada mais importante do tecido empresarial da cidade colocando em causa, pelo seu potencial efeito de conjunto, a capacidade e as condições de recuperação da economia urbana.

2. O recentemente publicado regime excecional do arrendamento urbano não habitacional1 definido no quadro das medidas económicas de resposta à situação de emergência criada pelo desenvolvimento da pandemia COVID-19, garante aos senhorios dos estabelecimentos acolhedores das atividades económicas e sociais afetadas pela crise o valor integral das rendas a pagar pelos inquilinos, podendo estes, contudo, beneficiar de um deferimento gratuito num período de 12 meses.

O governo cria, assim, uma espécie de cerca sanitária em torno da renda comercial e do senhorio, garantindo a este agente económico e setor da economia da cidade condições de preservação integral dos respetivos rendimentos, o que não tem paralelo com a dramática situação vivida pela esmagadora maioria do tecido empresarial e do emprego urbano decorrente da brutal quebra de receitas de uma vastíssima população de micro, pequenas e médias empresas.

3. Com a declaração do estado de emergência, em 18 de março, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, e com o consequente estabelecimento das medidas para a sua execução, nomeadamente, medidas de recolhimento domiciliário, de imposição do teletrabalho, de suspensão do comércio a retalho e de encerramento de estabelecimentos de restauração, recreativos, culturais, desportivos, a vida da cidade, a cidade tal como normalmente a conhecemos, desapareceu do dia para a noite. E, em paralelo, a economia urbana foi reduzida a níveis de atividade nunca vistos anteriormente. Entrámos em estado de sobrevivência coletiva. É preciso aguentar.

«Com a declaração do estado de emergência, em 18 de março, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, e com o consequente estabelecimento das medidas para a sua execução, nomeadamente, medidas de recolhimento domiciliário, de imposição do teletrabalho, de suspensão do comércio a retalho e de encerramento de estabelecimentos de restauração, recreativos, culturais, desportivos, a vida da cidade, a cidade tal como normalmente a conhecemos, desapareceu do dia para a noite»

Com a imposição do estado de emergência e utilizando um vocabulário que passou a fazer parte do nosso dia-a-dia, pode descrever-se a atual situação empresarial de uma parte muito significativa de micro, pequenas e médias empresas da seguinte forma: uma enorme massa de empresas deu entrada imediata nos serviços de urgência para apoio económico, designadamente, empresas dos setores forçados a encerrar portas2 bem como dos setores cuja atividade foi fortemente abalada pelas medidas de contenção e de recolhimento domiciliário; desta massa de empresas, um número significativo terá dado entrada direta nos serviços de cuidados intensivos diagnosticando-se, designadamente, gritantes dificuldades no pagamento de salários logo no mês de março, sendo estas empresas vítimas do desajustamento das medidas de apoio económico urgente entretanto disponibilizadas pelo governo. No momento em que estas palavras são escritas há já provas de utilização de ventiladores pois são conhecidos casos em que a situação de sobrevivência da empresa é já equacionada pelos respetivos empresários. O número de fatalidades começará a conhecer-se com alguma brevidade e os seus valores dependerão da extensão do período de combate à pandemia, das limitações que este combate colocará ao funcionamento normal da atividade económica e da eficácia que as medidas de política económica de emergência venham a registar.

4. São já conhecidas algumas evidências que dão testemunho do cenário acabado de traçar. No dia 8 de abril, no programa da RTP 1, «Especial Estado de Emergência», Ana Jacinto, Secretária-Geral da AHRESP (Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal), a associação empresarial de um dos setores mais violentamente afetados economicamente pela pandemia, dava nota dos seguintes números obtidos num inquérito expedito recentemente realizado aos associados3:

- 75% dos respondentes encontrava-se de portas fechadas, sendo que este número chega aos 100% no setor da restauração,

- 80% dos respondentes indicara que o volume de vendas após a declaração do estado de emergência era nulo,

- 30% dos respondentes afirmara que não tinham liquidez suficiente para o pagamento de salários do mês de março,

- 50% dos respondentes iriam avançar para o regime de lay-off simplificado e, destes, 70% dos respondentes afirmara que, sem o apoio das medidas do governo, não terão liquidez para pagar os salários do mês de abril.

Estes números são uma boa tradução do quadro económico e social que se perspetiva estar a desenvolver e a acentuar nas atuais circunstâncias excecionais e traçam de forma clara a situação crítica por que atualmente estão a passar milhares de micro e pequenas empresas nos vários setores apanhados pela pandemia. Os muito recentes dados do crescimento do desemprego (crescimento de cerca de 28 mil desempregados no mês de março), por um lado, e, por outro, o número brutal de empresas em situação de lay-off, arrastando uma massa de trabalhadores que ultrapassa já o milhão, acentuam a tonalidade negra da situação.

«uma enorme massa de empresas deu entrada imediata nos serviços de urgência para apoio económico, designadamente, empresas dos setores forçados a encerrar portas1 bem como dos setores cuja atividade foi fortemente abalada pelas medidas de contenção e de recolhimento domiciliário; desta massa de empresas, um número significativo terá dado entrada direta nos serviços de cuidados intensivos diagnosticando-se, designadamente, gritantes dificuldades no pagamento de salários logo no mês de março, sendo estas empresas vítimas do desajustamento das medidas de apoio económico urgente entretanto disponibilizadas pelo governo»

Tal como tem sido sinalizado por diferentes comentadores, a manutenção das atuais condições económicas coloca em causa a sobrevivência de uma larga camada empresarial e por esta via é a manutenção de capacidade produtiva e empresarial que está em questão. Por outro lado, é a manutenção do emprego e a manutenção dos salários que está a ser fortemente pressionada com a degradação da situação deste tipo de empresas.

5. É neste quadro que deve ser avaliada a opção do governo de preservação do pagamento integral da renda não-habitacional por parte das empresas (e outras instituições) afetadas pelo estado de emergência, garantindo com esta opção a integralidade dos rendimentos das entidades proprietárias dos imóveis.

Tomemos como referência uma situação hipotética envolvendo duas empresas do grupo dos 80% dos respondentes do inquérito da AHRESP que indicaram, depois da declaração do estado de emergência, que os respetivos volumes de vendas tinham passado a valores nulos. Esta simulação compara dois restaurantes (restaurante A e restaurante B) localizados no centro de uma cidade e em tudo iguais no que diz respeito às condições das instalações, da capacidade produtiva e qualidade de serviço, do volume de emprego (ambos têm dois empregados) e do volume de vendas. A única distinção entre estes dois restaurantes é o estatuto de ocupação do espaço (das instalações) por parte do casal gerente da atividade: no restaurante A, a propriedade do imóvel é do casal Diogo e Gertrudes e a exploração do restaurante é do casal Mário e Isabel, já no vizinho restaurante B, a propriedade do imóvel e a exploração do restaurante são, ambas, do casal José e Maria.

A tabela que se apresenta de seguida resume a situação antes e a situação depois da declaração do estado de emergência no que se refere à geração e distribuição das receitas de exploração dos dois restaurantes.

Antes da declaração do estado de emergência em ambos os restaurantes o nível de produção realizada permitia a cobertura de todos os custos operacionais, das remunerações dos casais gerentes e dos salários dos dois trabalhadores. Os resultados permitiam, ainda, no caso do restaurante A, o pagamento da renda do imóvel ao casal Diogo e Gertrudes (senhorios), e, no caso do restaurante B, a geração de uma receita de valor semelhante à da renda do restaurante A que José e Maria, por acumularem o estatuto de proprietários do imóvel, internalizam como resultados de exploração do restaurante. Desta forma, e no quadro de condições de normal funcionamento do mercado, nada há que impeça a existência de uma idêntica situação comercial e de distribuição de resultados entre os vários fatores de produção intervenientes na atividade produtiva dos restaurantes: as atividades de gestão, os salários, os restantes custos operacionais e a renda comercial têm os respetivos valores cobertos.

Após a declaração do estado de emergência, levando à suspensão das atividades de restauração, e, portanto, interrompendo o ciclo normal de faturação, todo este regime de distribuição equilibrada de resultados pelos diversos fatores de produção é, do dia para a noite, alterado numa configuração que fica protegida com a opção do governo, estabelecia na Lei nº 4-C/2020, de garantir o pagamento integral da renda ao senhorio.

Com a suspensão das atividades de restauração os restaurantes A e B ficam sem possibilidade de produzir e de vender e, desta forma, entram imediatamente numa situação de receita nula (esqueça-se, para este efeito, a possibilidade do serviço de take-away pela insignificância de resultados que vem demonstrando na compensação da perda de rendimento). Mas há um detalhe que provoca uma diferenciação estrutural, entre o restaurante A e o restaurante B, no impacto que a suspensão da exploração tem junto dos rendimentos obtidos por cada fator de produção.

«num momento em que o que está em causa é, efetivamente, a defesa da manutenção de capacidade produtiva, da manutenção do emprego e de defesa do salário, elementos fundamentais para uma retoma mais robusta e económica e socialmente equilibrada, a opção de garantir o pagamento integral da renda comercial constitui um colossal absurdo do ponto de vista económico»

No caso do restaurante B, como a exploração do restaurante é assegurada pelo empresário que é, simultaneamente, senhorio, a suspensão da atividade leva a que a retribuição de todos estes fatores de produção (gestão, trabalho e renda comercial) fique sujeita ao efeito imediato e direto de receita nula da exploração. No caso dos associados da AHRESP este efeito resulta, nomeadamente, no facto de 30% das empresas declararem não terem condições para pagar salários já no mês de março e 70% das empresas que recorreram ao lay-off declararem a mesma dificuldade no pagamento dos salários de abril. Ainda no caso do restaurante B, a receita nula condicionará fortemente a remuneração do casal gerente do restaurante, José e Maria, para além de conduzir à não cobertura da componente de renda comercial ao que se pode acrescentar semelhantes limitações no pagamento dos restantes custos operacionais.

No caso do restaurante A, onde a atividade de produção, isto é, a gestão do restaurante é assegurada por um empresário que é inquilino do casal Diogo e Gertrudes, a situação é estruturalmente diferente. Também aqui, Mário e Isabel, o casal que assume a gestão e participa na produção do restaurante, sentem imediata e diretamente o efeito da falta de faturação quer nas dificuldades com que se confrontam no pagamento dos salários dos dois trabalhadores, quer também nas dificuldades para cobrir as suas próprias remunerações e os restantes custos operacionais. Contudo, o senhorio, o casal Diogo e Gertrudes, consegue garantir o pagamento da renda do imóvel por parte do casal inquilino mesmo que este, como vimos, tenha receita nula pelas razões conhecidas.

6. Isto é, em ambos os casos, restaurante A e B, os representantes dos fatores de produção diretamente ligados ao processo de produção material e de criação efetiva de valor, os casais gerentes e os trabalhadores dos restaurantes, suportam integralmente os custos económicos e sociais do efeito que o estado de emergência teve neste setor que se revela altamente exposto às atuais circunstâncias.

Em situação oposta, encontra-se o fator de produção que intervém indiretamente no processo de produção e os agentes económicos que se encontram totalmente desligados do processo de produção material e de criação de valor – a propriedade imobiliária e os senhorios, respetivamente – os quais garantem com a mobilização de características específicas do imobiliário como fator de produção (situação de monopólio em termos de localização, inelasticidade de oferta, indivisibilidade e iliquidez) e pelo exercício do direito de propriedade privada imobiliária, coberto pela Lei aprovada, a obtenção da renda comercial no seu valor integral. Desta forma, a sagrada tríade «propriedade imobiliária-renda comercial (variável ligada com a renda fundiária)-senhorio» consegue, com a desafortunada proteção da designada política económica de emergência do governo do PS, o extraordinário feito de poderem vir a passar incólumes por este dramático período da vida económica e social do país e que terá uma acentuada expressão nas cidades e nos restantes aglomerados urbanos. Uma opção económica e socialmente absurda, de facto!

Esta aberração é particularmente expressiva, podendo ser-lhe efetivamente fatal, no setor das micro e pequenas empresas, isto é, no tecido económico que constitui a base da vida urbana e a sustentação económica e social das comunidades locais: a pequena oficina, o pequeno comércio, a pequena empresa de serviços, o pequeno restaurante ou unidade de alojamento. Nestas empresas o valor da renda comercial tem uma muito significativa expressão na estrutura de custos de exploração. Nestas situações, a defesa do pagamento integral da renda ao senhorio será sempre feita à custa do pagamento de salários e de outras remunerações, designadamente, das remunerações daqueles que asseguram a respetiva exploração. Da mesma forma, nas atuais circunstâncias de quebra abrupta de procura e, consequentemente, de faturação, e num quadro de previsível recuperação lenta no pós-pandemia, a garantia do pagamento integral da renda, mesmo com a facilidade de diferimento no tempo, isto é, com dívida reforçada, será um fator adicional que carregará o lado negro da equação de sobrevivência ou não sobrevivência deste tecido empresarial fundamental ao normal funcionamento e da economia nacional e de sustentabilidade das economias urbanas.

«A imposição da redução das rendas não-habitacionais deve ser implementada atendendo a aspetos socialmente importantes do mercado de arrendamento em determinadas cidades, particularmente, nas zonas históricas. Estão em causa, designadamente, as situações onde se verifica uma forte presença dos também micro e pequenos proprietários e senhorios e que têm nas rendas as fontes principais dos seus rendimentos familiares e pessoais»

Estaremos verdadeiramente todos no mesmo barco? Não, as entidades proprietárias dos imóveis não habitacionais conseguirão passar pela pandemia em posição claramente protegida dos dramáticos impactos económicos e sociais que os seus inquilinos estão a viver.

Assim, num momento em que o que está em causa é, efetivamente, a defesa da manutenção de capacidade produtiva, da manutenção do emprego e de defesa do salário, elementos fundamentais para uma retoma mais robusta e económica e socialmente equilibrada, a opção de garantir o pagamento integral da renda comercial constitui um colossal absurdo do ponto de vista económico (porquê proteger a renda comercial quando o que está em causa é a defesa da capacidade de produção e do salário?). A proteção da renda comercial é, também, um inaceitável fator gerador de desigualdades sociais (porquê proteger o senhorio, cujos ativos imobiliários serão preservados, à custa do muito pequeno e pequeno empresário e do trabalhador?). É ainda um profundo golpe nas condições de relançamento das economias urbanas, nomeadamente das economias de proximidade, sustentáculo fundamental das dinâmicas urbanas, das sociabilidades e do carácter identitário das cidades.

7. É óbvio que o setor imobiliário (tal como o setor bancário no que diz respeito às condições dos empréstimos) terá de ser chamado a participar nas «despesas» da crise e na criação de condições de suporte às estratégicas de sobrevivência e de preservação da capacidade de produção e do emprego e, consequentemente, de redução da mortalidade empresarial. É, pois, fundamental, no caso das atividades atingidas pela pandemia, e durante um período inicial de recuperação, a imposição da redução de rendas, tendo esta redução uma relação com a quebra proporcional do volume de vendas. Esta imposição deve ser acompanhada, naturalmente, com a isenção paralela, pelo mesmo período e na mesma proporção, nomeadamente, do IMI.

Neste sentido, estiveram bem vários municípios que determinaram, como medida de apoio económico e social, a isenção do pagamento de renda aos respetivos inquilinos de espaços comerciais.

8. A imposição da redução das rendas não-habitacionais deve ser implementada atendendo a aspetos socialmente importantes do mercado de arrendamento em determinadas cidades, particularmente nas zonas históricas. Estão em causa, designadamente, as situações onde se verifica uma forte presença dos também micro e pequenos proprietários e senhorios e que têm nas rendas as fontes principais dos seus rendimentos familiares e pessoais. Assim, para garantir uma eficaz resposta a eventuais situações de quebra acentuada de rendimentos das famílias de senhorios por via da imposição da redução das rendas, deve ser criada uma linha de apoio público que garanta a compensação adequada nas atuais circunstâncias à quebra destes rendimentos.


Josué Caldeira é economista. O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AE90)

  • 1. Trata-se da Lei nº 4-C/2020, de 6 de abril, que estabelece o regime excecional para as situações de mora no pagamento de arrendamento urbano habitacional e não habitacional. Esta nota aborda exclusivamente a componente do regime não habitacional.
  • 2. Determinado pelo Decerto nº 2/2020, de 20 de março, que procede à execução da declaração do estado de emergência (ver artº 7 e anexo I deste diploma).
  • 3. Estes dados foram posteriormente confirmados na edição de 12 de abril, do jornal Público, numa entrevista à SG da AHRESP.

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