O Consórcio Internacional de Jornalistas Independentes (IJIC) publicou este fim-de-semana um artigo1 baseado numa investigação conduzida em torno dos Uber Papers, um vasto conjunto de documentos e comunicações internas da Uber.
A Uber reagiu ao conjunto de denúncias dizendo que o conteúdo agora exposto é referente à gestão do anterior CEO e que, desde 2017 com um novo CEO, essas práticas foram completamente afastadas. É preciso ter em conta que um lema – documentado – da tal anterior equipa era «É melhor pedir perdão que permissão»... que é exactamente o que a Uber está a fazer neste momento... mas enfim, esta é conversa para enganar quem quer ser enganado.
O conteúdo até agora tornado público não é muito rico em elementos concretos sobre o processo português, mas a informação disponibilizada ilustra bem o que foram vários processos de entrada forçada da Uber em vários países, e nesse sentido devem ser vistos como um espelho onde o processo português tem que ser entendido e tratado.
Comprando quem os defenda
Quando a Uber realizou uma listagem de algumas centenas de personalidades que era útil atrair, não lhes estabeleceu um preço, e muito menos o mesmo preço, até porque não tinham o mesmo valor para a companhia. Os Uber Papers dizem-nos que para 2016 eram 90 milhões os dólares reservados para esta actividade de atracção, e ilustram situações de pessoas atraídas com descontos na companhia, jantares de luxo, conselhos sobre empregos, contribuições de campanha e oferta de acções. Pessoas úteis que tanto podiam ser políticos, decisores públicos ou académicos. E que eram chamados a cumprir o seu papel quando tal se colocava.
Estas pessoas atraídas apelavam a que «se levantassem exigências, mudassem as políticas relativas aos direitos dos trabalhadores, desenhassem novas leis para o táxi e facilitassem na verificação de antecedentes dos motoristas».
«Quando a Uber realizou uma listagem de algumas centenas de personalidades que era útil atrair, não lhes estabeleceu um preço, e muito menos o mesmo preço, até porque não tinham o mesmo valor para a companhia.»
A forma como uma ex-vice-presidente da Comissão Europeia acaba a receber 200 mil euros da Uber é descrita em pormenor, até citando declarações dos responsáveis da Uber proibindo a referência sequer ao nome dessa pessoa, até ser legal oficializar a sua contratação, depois de passar o período de nojo de 18 meses. Uma contratação realizada para um cargo formal – Presidente do Conselho Consultivo – com um ordenado bem real – 200 mil euros – e com funções reais que se depreende serem muito diversas das formais, como por exemplo, pressionar o Governo dos Países Baixos a «forçar o regulador e a polícia a afastar-se».
Actuando como uma organização criminosa
Outra das dimensões que os Uber Papers ilustram é a imagem de uma multinacional actuando como uma autêntica organização criminosa. Discutindo o bloqueio informático de esquadras e edifícios da polícia para travar investigações em curso. Infiltrando agentes seus nos «falsos clientes» usados pela polícia para operações contra a Uber como mecanismo de conhecer com antecedência as operações. Instalando e accionando botões para cortar o acesso a documentação sensível em momentos de rusgas policiais.
É neste ambiente doentio e criminal que parece natural a sugestão dada por um dos responsáveis, em Portugal, de comprar uma investigação sobre um dirigente da ANTRAL para tentar descobrir algo útil de usar numa campanha mediática. Ou parece ainda mais natural a táctica usada em vários países, incluindo Portugal, de montar verdadeiras provocações destinadas a gerar uma resposta violenta por parte dos taxistas para depois poder usar essa resposta para promover a Uber.
O poder económico e o poder político em conluio contra o povo
Onde a investigação destapa vários casos é no conluio do poder político – comprado, convencido ou submetido – com o poder económico para conseguir servir os interesses da multinacional e enganar a opinião pública.
São exemplos os contactos com Macron, então ministro da Economia, que se terá comprometido a «contornar a legislação», ou a participação de dez quadros da Uber em Davos e os contactos com o poder político ao mais alto nível. Apropriado aos tempos em que vivemos, dessa reunião de Davos do Fórum Económico Mundial, os contactos com capitalistas russos foram intermediados por oligarcas ingleses.
Atraindo os motoristas com falsas promessas
Os processos de liberalização incluem muitas vezes medidas, incluindo remuneratórias, para atrair os profissionais do sector a serem cúmplices do processo que, quando completo, promoverá a sua progressiva proletarização com o correspondente aumento da exploração a níveis superiores ao início do processo.
A pandemia trouxe problemas de extrema gravidade e serviu de cortina de fumo para o agravamento da precariedade, a destruição de postos de trabalho e a desvalorização daqueles que verdadeiramente produzem riqueza. Há dias, numa pequena viagem de carro, o motorista do TVDE que apanhei contava-me que na primeira semana de confinamento tinha feito 20 euros. Depois disso, começou a fazer biscates para conseguir pagar contas. Para além do seu próprio caso, contou histórias que vão circulando entre trabalhadores destas plataformas: gente que investiu em carros no início de 2020, gente que faz 14 ou 15 horas e que trabalha pelo valor mais baixo só para poder ganhar qualquer coisa. O trabalho não paga sequer o combustível, mas as plataformas continuam a faturar. Para quem começou neste negócio pela perspetiva do empreendedorismo, a pandemia foi um choque com a realidade do trabalho precário. «Em Bruxelas, já a maioria dos Estados-membros sentia os efeitos de uma crise económica e social inegável, desenhava-se a «bazuca» em folha de cálculo, para dar resposta a realidades que todos os dias se agravavam mais. Mas nem a Comissão Europeia nem o governo português conseguiram esconder o conflito que um instrumento de emergência orçamental tinha com uma política económica desigual entre os seus diversos membros» Se não fossem estas breves conversas, teria mais dificuldade em conhecer relatos de pessoas que se estão a confrontar com a falta de expectativas no seu trabalho. Alguns amigos ligados à restauração vão desabafando sobre um pessimismo cada vez mais confirmado na impossibilidade de pagar salários (quanto mais receber) apesar de algum apoio do Estado. De resto, talvez por vergonha do julgamento alheio, os testemunhos são tímidos, como se estivessem a viver esta problema sozinhos. Na verdade, este período isolou muitos de nós e limitou-nos na partilha e na solidariedade, apesar de o impacte da pandemia na economia se ter feito sentir quase de imediato nos setores mais fragilizados e mais precários. Dentro desses setores de atividade, foi necessário combater esse isolamento e procurar uma resposta conjunta para enfrentar aproveitamentos patronais e hesitações políticas. Pouco depois de se decretar o confinamento obrigatório, em 2020, não tardaram as notícias sobre limitações de direitos laborais, despedimentos e desaparecimento de certos postos de trabalho. As micros, pequenas e médias empresas começaram a acusar a falta de apoio público e os relatos desesperados de pequenos empresários e trabalhadores não podiam mais ser escondidos por detrás de mensagens de otimismo santimonial. O país que não se limitou a confinar e despertava para a necessidade de se manifestar e lutar pelos seus direitos, enquanto os media serviam de caixa de ressonância de «achismo» político, reduzindo a pandemia a uma mera crise de gestão governamental e comunicacional. «Enquanto países como a Alemanha chegaram com eficácia às necessidades dos pequenos negócios e dos trabalhadores, os países periféricos, anteriormente intervencionados, como Portugal, sentiram os efeitos de uma política de contenção orçamental e de imposição do «equilíbrio» das contas públicas» Em Bruxelas, já a maioria dos Estados-membros sentia os efeitos de uma crise económica e social inegável, desenhava-se a «bazuca» em folha de cálculo, para dar resposta a realidades que todos os dias se agravavam mais. Mas nem a Comissão Europeia nem o governo português conseguiram esconder o conflito que um instrumento de emergência orçamental tinha com uma política económica desigual entre os seus diversos membros. Enquanto países como a Alemanha chegaram com eficácia às necessidades dos pequenos negócios e dos trabalhadores, os países periféricos, anteriormente intervencionados, como Portugal, sentiram os efeitos de uma política de contenção orçamental e de imposição do «equilíbrio» das contas públicas. Esta análise encontrou eco nalguma imprensa portuguesa: de Agostinho Lopes, num artigo deste mês no Jornal Económico, a Eugénia Pires, numa outra reflexão, na edição portuguesa do Le Monde diplomatique de Março («Endividamento público na crise pandémica, uma hipoxia feliz»). Torna-se fundamental compreender esta leitura mais ampla, macroeconómica, para compreender as movimentações sociais de resposta à crise pandémica e económica que se fizeram sentir em Portugal, no último ano. A par da hesitação da política orçamental, com um Orçamento do Estado a ser negociado em condições difíceis, muitas foram as empresas que aproveitaram a pandemia para despedir trabalhadores, para não pagar salários e para suspender direitos. A pandemia, que só por si trouxe problemas de extrema gravidade, serviu também de cortina de fumo para se prosseguir com o agravamento da precariedade, com a destruição de postos de trabalho e com a desvalorização daqueles que verdadeiramente produzem riqueza, fosse através do não pagamento de horas extraordinárias ou da recusa de pedidos de férias. Os dividendos – esses – continuaram a ser distribuídos. «apesar de uma enorme pressão mediática para limitar direitos de manifestação e de ação política – perfeitamente sintetizada na reprovação e na falta de solidariedade com as ações de luta do 1.º de Maio – e das restrições decretadas pelos vários estados de emergência, 2020 foi um ano de grandes demonstrações de resistência e coragem dos trabalhadores de muitos setores» Porém, apesar de uma enorme pressão mediática para limitar direitos de manifestação e de ação política – perfeitamente sintetizada na reprovação e na falta de solidariedade com as ações de luta do 1.º de Maio – e das restrições decretadas pelos vários estados de emergência, 2020 foi um ano de grandes demonstrações de resistência e coragem dos trabalhadores de muitos setores, que cedo perceberam o aproveitamento da pandemia e não tiveram outra alternativa senão sair à rua para defender o seu direito ao trabalho e os direitos do trabalho. Estas ações de luta não foram inconsequentes e os seus resultados demonstram a importância do sindicalismo, da unidade e da solidariedade entre trabalhadores. Num tempo em que crescem os discursos antissindicais, disfarçados de preocupação com a falta de rejuvenescimento dos sindicatos, em que o capitalismo alimenta o individualismo, o derrotismo, o medo e a inércia; num tempo em que a agenda mediática tenta colocar os trabalhadores uns contra os outros e em que a ausência de referências à luta dos trabalhadores se faz sentir em cada peça noticiosa sobre «a crise» – neste tempo, o nosso –, os trabalhadores resistem e organizam-se, lutam e vencem, contra todas estas investidas, que têm na classe média o seu soldado preferido. «Só este esforço e esta ação coletiva conseguem demonstrar que não há inevitabilidades e que as consequências de uma economia periférica, sujeita a regras orçamentais exteriores e interesses que não correspondem às necessidades reais dos povos, têm uma resposta» Desde 2020 até hoje, saíram à rua operários da indústria, que não só resiste ao tempo como resiste à lei; trabalhadores de multinacionais chantageados para lhes suprimirem direitos como o direito a férias; trabalhadores com salários em atraso e a quem foram retirados os subsídios de natal ou de férias; trabalhadores a quem foi pedido para alargarem o horário legal de trabalho sem direito ao pagamento das horas extraordinárias ou a quem foi imposto um modelo de banco de horas que irá prejudicar o bem-estar familiar; trabalhadores que viram as suas despesas de consumo doméstico aumentarem com o teletrabalho; trabalhadores que viram o risco a aumentar sem qualquer compensação; trabalhadores que fizeram de sujeitos passivos no encerramento das empresas onde são a força produtiva de trabalho; enfermeiros, professores e demais trabalhadores do Estado que exigem a valorização das carreiras. Todos os dias, se abrirmos as informações dos sindicatos, nas suas plataformas oficiais, lá estão todas essas lutas, todos os momentos cruciais dessas lutas, todo o apoio que os sindicatos disponibilizam aos trabalhadores, o papel dos partidos políticos na conclusão dos processos (senão na origem destes) e cada conquista que os trabalhadores conseguem com todo este sacrifício e todos estes bloqueios. É aí que veremos que, depois de duas semanas de luta intensa, os trabalhadores da Groundforce conseguiram o pagamento dos salários em atraso; que, depois de 2 anos, Cristina Tavares viu a empresa que a violentou sentenciada em tribunal; que os trabalhadores e pequenos empresários viram as regras do lay-off serem paulatinamente alteradas a seu favor; que as trabalhadoras da Castimoda conseguiram impedir que o patrão retirasse as máquinas da fábrica; ou que os trabalhadores da refinaria de Matosinhos resistem ao seu encerramento. É aí que veremos, por exemplo, que trabalhadores como aquele motorista de TVDE que apanhei há dias já se conseguiram organizar e levar ao Governo as suas reivindicações sobre a regulamentação do setor. Só este esforço e esta ação coletiva conseguem demonstrar que não há inevitabilidades e que as consequências de uma economia periférica, sujeita a regras orçamentais exteriores e interesses que não correspondem às necessidades reais dos povos, têm uma resposta. Todas as ações de luta dos trabalhadores, reunidas, são um movimento político consequente, que fará eco nos centros de decisão e obrigará a cedências. Só a luta organizada dos trabalhadores poderá reivindicar uma verdadeira alternativa política soberana, que não esteja dependente de Bruxelas e que desencadeie um conjunto de opções orçamentais que responda à situação real do país, com uma fiscalização profunda às dinâmicas fraudulentas, com um investimento sério no setor produtivo do Estado, com uma Segurança Social robusta, com serviços públicos com recursos suficientes para garantir o acesso de todos e com a consolidação da contratação coletiva. Tudo isto começa na luta dos trabalhadores. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Opinião|
O papel da luta
Contribui para uma boa ideia
Mas a Uber foi mais longe, oferecendo bónus, incentivos e percentagens que levaram muitos a realizar investimentos de que acabaram por ficar reféns quando esses valores foram retirados.
Os Uber Papers revelam ainda o facto de a multinacional se ter oferecido – para evitar pressão sobre os seus próprios impostos – a ajudar na recolha de impostos aos motoristas. Edificante, sem dúvida.
Significativo é ainda constatar a diferença nas declarações de Joe Biden, em Davos, depois de uma reunião com directores da multinacional, quando se tratava de facilitar a entrada desta no mercado mundial, prometendo «dois milhões de novos empregos este ano, permitindo a liberdade de trabalhar tantas horas quanto se deseje, e organizar a vida de cada um como desejar», com a resposta que agora dá, frente às consequências reais do processo sobre os trabalhadores dos EUA: «estou comprometido em combater o emprego desqualificado que priva os trabalhadores de protecções e benefícios fundamentais, como sejam o salário mínimo, as horas extras e as licenças familiares e médicas».
Revisitando agora o caso português
Depois da leitura do resumo acima publicado, que cada um revisite o processo português e daí retire as devidas ilações.
Durante vários anos, a multinacional actuou em Portugal na mais completa ilegalidade, afrontando as leis do sector onde está inserida, o transporte remunerado de passageiros em viatura ligeira. Nunca o Estado português tentou qualquer acção séria contra ela. Os seus sites ou aplicações nunca foram bloqueados – e é possível, como está demonstrado. Os motoristas que operavam ao seu serviço actuavam na mais completa ilegalidade, afrontando a natural hostilidade dos profissionais do táxi, que realizavam uma actividade regulada que sofria a concorrência desleal e ilegal da Uber. Raras vezes foram multados, ao contrário do táxi, que sofria campanhas de assédio policial. A comunicação social aplaudia a «novidade» enquanto os opinion makers faziam opiniões.
Até que em 2018, PS e PSD se juntaram, com o apoio do PAN e a abstenção do CDS, para criar a Lei do TVDE, legalizando a actividade da multinacional. Uma lei que não é cumprida em muitas das suas disposições, mas veio legalizar a actividade da Uber, que passou a recolher muitos milhões de euros do transporte remunerado de passageiros em viatura ligeira realizado em Portugal. Passado pouco tempo, as condições de trabalho regrediram no próprio sector TVDE e as justas lutas dos seus profissionais têm crescido.
Todo um processo que já na altura parecia sujo. Que hoje parece ainda mais sujo. E que se algum dia for propriamente investigado, se revelará seguramente ainda mais sujo.
Dirão alguns, e qual é a novidade? Tudo isso é velho e tudo isso é capitalismo. E têm razão.
- 1. «A máquina de Lobby: como a Uber ganhou acesso aos líderes mundiais, enganou investigadores e explorou a violência contra os seus motoristas numa batalha pelo domínio mundial.», ICIJ, 10 Julho de 2022. O conhecimento público dos Uber Papers que aqui reporto é o transmitido neste artigo.
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui