Ontem houve luta dos motoristas e empresários do TVDE. Queixavam-se da realidade do sector e exigiam mudanças na Lei. Uma ocasião que nos convida a revisitar o processo de entrada das plataformas em Portugal, de criação das condições para a aprovação da Lei 45/2018, que criou o TVDE, e a tentar perceber quem ganhou e perdeu com o processo, e que é que se pode fazer agora.
A «acomodação» legal da Uber é feita em conluio com governantes de vários países e dirigentes da UE, gente que os principais responsáveis da empresa tratam com o desdém de quem controla um funcionário submisso. Nos últimos anos, habituámo-nos a viver com a existência das plataformas digitais em várias esferas das nossas vidas. Recapitulemos: em menos de uma década, actos tão banais como apanhar um táxi, mandar vir comida para casa, arrendar casa por uns dias, entre muitos outros, passaram a ser mediados por serviços digitais que, graças a mecanismos informáticos avançados (vulgarmente designados de algoritmos), associam potenciais clientes na procura de um serviço e potenciais prestadores desse mesmo serviço. Como é sobejamente conhecido, este modelo assentou e continua a assentar em práticas de concorrência desleal e violações ostensivas dos direitos dos seus trabalhadores. Não obstante, e apesar de sucessivas decisões de tribunais que atestavam de forma inequívoca o recurso sistemático a práticas ilegais por parte das plataformas, a postura da generalidade dos governos à escala mundial (com honrosas excepções) era de que se devia criar legislação para trazer estas práticas para o «lado certo» da lei. Dito doutra forma, que se devia normalizar o que até agora tinha sido – e bem – considerado ilegal e inadequado. Este era o imperativo colocado pelo «progresso disruptivo» e a «inovação», ainda que pelo caminho se sacrificassem direitos arduamente conquistados. Mas nem isso importava muito, afinal de contas, esse era o preço do progresso a pagar pela chegada do futuro: a chamada «destruição criativa». «a «acomodação» legal da Uber (e por maioria de razão das outras plataformas) é feita em conluio com governantes de vários países (dentro e fora da Europa) e dirigentes da União Europeia, tudo gente que – não obstante as suas altíssimas responsabilidades – os principais responsáveis da empresa tratam com o desdém de quem controla um funcionário submisso» Mas seria realmente assim? Uma investigação jornalística à escala internacional que veio a público nos últimos dias responde claramente que não. O alvo destes jornalistas de mais de 40 países foi nada menos que um dos grandes gigantes do sector: a Uber. O que agora se divulga confirma da pior forma o que já se adivinhava, nomeadamente que: 1) a conduta da empresa é reconhecidamente ilegal, mas que a lei é para ignorar olímpica e orgulhosamente, até que os decisores políticos cedam à vontade da empresa; 2) no processo para fazer água chegar ao seu moinho, isto é, garantir que a desregulação fosse normalizada tanto quanto possível em cada contexto, a Uber decidiu de forma consciente usar os seus trabalhadores como agentes de pressão social e política, mesmo quando isso implicava expô-los a situações de alto risco e potencial violência – como foi o caso inclusive em Portugal; 3) a «acomodação» legal da Uber (e por maioria de razão das outras plataformas) é feita em conluio com governantes de vários países (dentro e fora da Europa) e dirigentes da União Europeia, tudo gente que – não obstante as suas altíssimas responsabilidades – os principais responsáveis da empresa tratam com o desdém de quem controla um funcionário submisso. Neste particular, o actuais presidentes francês e norte-americano, Emmanuel Macron e Joe Biden, saem muito mal na fotografia, mas estão longe de ser casos únicos. De resto, isto deixa claro como estamos em presença de um problema estrutural de falta de independência do poder político face aos grandes poderes económicos, mais do que um ou outro caso pontual. Claro que a Uber se apressou a dizer que não é bem assim e, sobretudo, que o que lá vai, lá vai, uma vez que os documentos agora revelados como parte deste Uber Files vão só até 2017. No entanto, mesmo que faltem as provas documentais, quem acompanha o sector dificilmente pode acreditar nesta redenção de última hora; se há algum indício é precisamente do oposto - que tudo continua mesma e que, muito provavelmente, a Uber está longe de estar sozinha na forma como opera. «podemos estar perante mais uma inexplicável cedência aos interesses das plataformas que, de novo, verão os seus interesses e práticas ilegais e ilegítimas prevalecerem sobre os direitos dos trabalhadores. Dificilmente se pode achar que tal opção por parte do Governo resulte de ingenuidade, mas se os Uber Files provam alguma coisa é que as grandes plataformas se movem unicamente pelo seu interesse próprio, e não pela criação de emprego, dinamização da economia ou qualquer objectivo bondoso que lhe queiram colar» Isto seria sempre razão para que se reavaliasse o enquadramento legal desta plataforma, fazendo um balanço da sua consolidação, mas em Portugal e na União Europeia, este é um momento particularmente crítico. Em ambos os âmbitos, nacional e comunitário, está aberto o processo de regulamentação da situação dos trabalhadores das plataformas digitais. Se, no que diz respeito aos desenvolvimentos na UE, há demasiadas questões em aberto para que se faça um comentário consequente a esta altura, por cá as coisas são mais claras. Depois de um início pretensamente auspicioso do processo, em que se prometia resolver a incorrecta classificação de milhares de trabalhadores como empregados a título individual, o Governo português parece estar prestes a dar uma pirueta legislativa e criar condições para que tudo fique na mesma, graças a um expediente legal que dificilmente terá outro efeito além de criar confusão no sector e, ainda assim, deixar os trabalhadores desprotegidos. Tragicamente, aquilo a que assistiremos se o Governo se insistir neste caminho é, tão simplesmente, o que seria relativamente simples dada a moldura legal já existente no Código do Trabalho. Assim, podemos estar perante mais uma inexplicável cedência aos interesses das plataformas que, de novo, verão os seus interesses e práticas ilegais e ilegítimas prevalecerem sobre os direitos dos trabalhadores. Dificilmente se pode achar que tal opção por parte do Governo resulte de ingenuidade, mas se os Uber Files provam alguma coisa é que as grandes plataformas se movem unicamente pelo seu interesse próprio, e não pela criação de emprego, dinamização da economia ou qualquer objectivo bondoso que lhe queiram colar. Por isso, o tempo é de criar condições para uma vida melhor para os trabalhadores, não de cair em promessas que já se provaram não ser para cumprir. Ao contrário do que cantam os Ornatos Violeta, o monstro (das plataformas) não precisa de amigos. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Opinião|
Uber: o monstro não precisa de amigos
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Comecemos pelo que já começa a ser esquecido. Durante um conjunto de anos, a Uber actuou em Portugal na completa ilegalidade. Não cumpria a legislação do táxi, que era a lei que regulava o sector, e o Estado português permitiu-lhe actuar impunemente, ilegalmente. Deixou a Uber ganhar clientes, fazer dumping, acumular força. Protestava o sector do táxi e o PCP – tudo o resto vergava-se às promessas coloridas e modernaças da multinacional1. E isto durou dois governos, um do PSD/CDS e outro do PS.
Até que o Governo do PS decide avançar com a criação de um segundo regime para o transporte remunerado de passageiros em veículo ligeiro. Ao lado do sector do táxi, propunha-se criar o TVDE. Exactamente a mesma solução que defendia o PSD. Mais uma vez, protestou o sector do táxi e o PCP. O dinheiro investido pela multinacional Uber (que, recordemos, tem capital de algumas das maiores instituições financeiras do mundo), o domínio da comunicação social por agentes ao serviço da ideologia neoliberal, e a total subserviência de PS e PSD, foram fazendo caminho, e apesar da justa e importante luta do sector do táxi, a Assembleia da República votaria a lei 45/2018 com os votos do PS e do PSD, a que se juntaria o voto favorável do PAN e a abstenção do CDS.
«Durante um conjunto de anos, a Uber actuou em Portugal na completa ilegalidade. Não cumpria a legislação do táxi, que era a lei que regulava o sector, e o Estado português permitiu-lhe actuar impunemente, ilegalmente. Deixou a Uber ganhar clientes, fazer dumping, acumular força.»
Nas vésperas da aprovação da Lei, quer PSD, quer PS prometeram ao sector do táxi que iriam fazer duas coisas: reavaliar a lei três anos depois de aprovada, para corrigir eventuais distorções; introduzir, no pacote das descentralizações para as autarquias, a competência de estas determinarem contingentes para o TVDE. Como de costume, não cumpriram nem uma nem outra promessa, apesar de a primeira até ter ficado consagrada no corpo da Lei, mas sem qualquer efeito real.
Portugal passou a ter dois regimes para o mesmo sector de actividade – o Táxi e o TVDE – inevitavelmente a concorrerem um com o outro. Um absurdo. E uma cedência completa aos desígnios da liberalização, da concorrência, das multinacionais.
Passaram-se mais de cinco anos. Que aconteceu? O sector do táxi sofre da crescente concorrência, viu as suas margens diminuírem, a oferta diminuiu, e regista-se uma cada vez maior exploração da força de trabalho do sector. O sector está pior do que estava antes deste processo. E mesmo a lei de modernização do táxi, prometida em 2018, apenas foi aprovada em Conselho de Ministros em 2023, uma semana antes da demissão do governo, e com erros tão clamorosos como se terem «esquecido» de colocar um prazo para a adaptação de processos2.
E o TVDE? Disparou o número de licenças, de carros, de motoristas, de operadores. Num país onde há menos de 14 000 táxis, as licenças para motorista de TVDE já ultrapassam as 65 000. Onde a procura é solvente, como no centro de Lisboa e do Porto, os carros atropelam-se uns aos outros, são cinco, dez vezes o número dos táxis, e são um factor decisivo para o regresso dos engarrafamentos. Onde a procura é pouca, ou não existem, ou praticam preços tão «dinâmicos» que deveriam ser considerados especulativos. E as condições de trabalho? Os motoristas continuam a ser, na prática, remunerados à percentagem, mas por percentagens tão baixas que exigem horários de trabalho ilegais para poderem gerar um rendimento mínimo.
É o reino da exploração e da precariedade. Onde se dorme na mala do carro ou se trabalha 16 horas, sete dias por semana. Condições de trabalho tão más que acabam por atrair a mão-de-obra mais precarizada, nomeadamente imigrantes que não conhecem a língua e as estradas, e que acabam por ser apontados como o problema do sector por aqueles que nunca querem ver, entender e corrigir as verdadeiras causas dos problemas.
Mesmo aqueles que investiram no sector em pequena escala viram as margens prometidas serem completamente esmagadas, tornando quase inevitável o recurso à auto-exploração ou a participação nos vários esquemas que inundam a actividade.
Na realidade do TVDE só ganham os grandes. Desde logo as multinacionais, como a Uber e a Bolt, que recebem o dízimo (que chega aos 25%) de todos os pagamentos realizados por via das plataformas que gerem, que fazem os preços através de algoritmos bem afinados com os seus interesses, e que praticamente não pagam impostos sobre essas receitas. Bem como os grandes rent-a-car, também eles multinacionais, que disponibilizam viaturas para andar no TVDE, e até as produtoras de automóveis, pois a frota colocada ao serviço deste transporte ligeiro de passageiros é comprada a grandes multinacionais estrangeiras.
«Ora, se perdeu o Estado, se perderam os utentes, se perderam as autarquias, se perdeu o sector do táxi, e a realidade de operadores e trabalhadores do TVDE é a da precariedade e da exploração, porque tomaram PS e PSD esta opção? E, principalmente, porque a mantêm? Porque ganharam as multinacionais. E é ao serviço das multinacionais que esta malta se encontra.»
E o que ganhou o Estado português com este conjunto de opções? Nada. Alguns dirão, apressados, que ganhou o valor cobrado ao TVDE na nova taxa criada para este serviço. Com efeito, a Lei 45/2018 criou a «Contribuição de Regulação e Supervisão» que as plataformas electrónicas devem pagar. Essa «Contribuição» é de 5% da taxa cobrada pelas plataformas, que pode ser de, no máximo, 25% do preço pago. Ou seja, é uma taxa de, no máximo, 1,25% da receita bruta. Ora, em 2022, essa taxa rendeu 5,46 milhões de euros, de um total de comissões declaradas de 109,2 milhões de euros. Ora, muito mais do que isso gerariam essas receitas em IRC se fossem pagas a quem não foge ao pagamento de IRC em Portugal. E estas multinacionais fogem. Aliás, a taxa é paga de forma «auto-regulada», com o Estado a nem sequer exigir a certificação do software de facturação, como faz a qualquer pequeno negócio nacional.
E que ganharam os utentes? O acesso através de plataformas? Mas para isso não fazem falta multinacionais. Tarifas dinâmicas e mais baratas nos períodos de grande oferta? Uma vantagem discutível. Neste momento, as tarifas dinâmicas são uma forma encoberta de dumping, são mesmo ilegais quando se colocam abaixo dos custos de produção. Se permitirmos que as multinacionais arrasem com o táxi e as tarifas reguladas, amanhã estas tarifas só serão dinâmicas quando se tratar de subir o preço nas horas e locais de pouca oferta. Além de que as tarifas não reguladas são um mecanismo das multinacionais espremerem as margens de rentabilidade de operadores e motoristas.
E como cereja no topo do bolo temos as questões ambientais. Num país (e num Governo) onde tanto se fala de descarbonização, esta medida injectou dezenas de milhares de viaturas em circulação que não deveriam estar a circular.
Ora, se perdeu o Estado, se perderam os utentes, se perderam as autarquias, se perdeu o sector do táxi, e a realidade de operadores e trabalhadores do TVDE é a da precariedade e da exploração, porque tomaram PS e PSD esta opção? E, principalmente, porque a mantêm? Porque ganharam as multinacionais. E é ao serviço das multinacionais que esta malta se encontra.
E agora, que fazer?
Duas coisas são inevitáveis, se queremos encaminhar as coisas no bom sentido, ou seja, servindo os interesses dos motoristas, dos utentes e dos empresários do sector. Uma, é uma efectiva regulação, nomeadamente nas tarifas e nos contingentes. A outra é o afastamento das multinacionais. Por uma ínfima parte do custo hoje suportado, o País é perfeitamente capaz de criar, alojar e fazer funcionar uma plataforma pública de transporte. Opções para uma vida melhor.
- 1. E a acreditar no Uber Papers, outra investigação condenada a nunca chegar a bom porto, não foram só promessas que a Uber distribuía.
- 2. Por exemplo, hoje há competências que o IMT já não tem, mas as autarquias ainda não conseguem assumir. E há processos a caducar, multas, processos em tribunal, tudo provocado por esta opção idiota para a qual o Governo tinha sido alertado.
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