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Javier Falcó: «Até há pouco mais de 10 anos não se falava de bebés roubados»

No documentário La Caja Vacía, aborda-se um dos lados mais negros do franquismo, que passou para a transição e a democracia: os bebés roubados. Angelo Nero entrevista o realizador, Javier Falcó.

Imagem do documentário 'La Caja Vacía' 
Créditos / eldiario.es

A história de María José Picó – a quem tiraram a irmã gémea há mais de 50 anos, em 1962, na Residência de Alicante – é uma das de muitos homens e mulheres a quem tiraram filhos e irmãos no Estado espanhol, «num crime que se prolongou desde o início do golpe de Estado até à democracia».

Por esse motivo, na conversa mantida com o realizador, produtor e guionista Javier Falcó (Elche, 1967), o jornalista Angelo Nero, do portal Nueva Revolución, pergunta-lhe que «tinha de especial a sua história» e por que razão a escolheu para fio condutor do seu documentário La Caja Vacía.

«O caso de María José foi sempre muito mediatizado, entre outras coisas porque se trata de um roubo de bebés de manual. Neste contexto, o procurador que conduz o seu caso, tendo em conta as provas, não pode deixar de decretar uma das primeiras exumações que têm lugar em Espanha e a primeira na Comunidade Valenciana», disse Falcó, explicando que «María José é o fio condutor para simplificar a mensagem. Para lidar com este tema tão complexo, pareceu-me mais oportuno centrar-me apenas num caso, já que permite ao espectador não se perder em vários cenários e, assim, manter a sua atenção ao longo da história».

María José Picó / Nueva Revolución

Soledad Luque, presidente da associação Todos los niños robados son también mis niños (todas as crianças roubadas são também minhas crianças), também ela vítima do roubo de um irmão gémeo, afirmou em entrevista recente ao Público espanhol: «Não há filme de terror que reflicta a dor de uma mãe ao saber que lhe roubaram o seu bebé.» De certa forma, La Caja Vacía é isso, um filme de terror – defende Nero –, que pergunta ao realizador como abordou a história para conseguir que o drama se tornasse suportável durante 60 minutos.

«Quando María José me contou o seu caso, não pude ficar impassível diante da injustiça, e naquele momento decidi abordar a questão. Ela forneceu-me os contactos que considerei necessários para contar a sua história», diz Falcó. «Quis que, sem perder a componente emocional que possui, fosse também uma espécie de acta notarial. É apresentada muita documentação e, sobretudo, tentei que a história fosse endossada por especialistas. Penso que, desta forma, ninguém com um mínimo de sensatez e bom senso pode duvidar do que María José nos diz», frisa.

Na entrevista, o jornalista lembra a teoria do «gene vermelho», formulada pelo psiquiatra Antonio Vallejo-Nájera, que sustentava a necessidade de retirar os bebés «vermelhos» dos seus ambientes familiares, e pergunta se é difícil encontrar uma forma de contar esta parte da história sem que soe a ficção científica.

«É preciso situarmo-nos no contexto histórico, numa época em que o nacional-catolicismo exerce o poder absoluto, dentro de uma ditadura delirante e genocida do início do século passado. O que é difícil de entender é como é possível que os poderes públicos tenham feito vista grossa, mesmo em democracia, contribuindo para silenciar o problema. Até há pouco mais de dez anos, não se falava em bebés roubados», disse o realizador.

Soledad Luque / Nueva Revolución

A Amnistia Internacional, cuja voz aparece no filme através do advogado Daniel Canales, apresentou um Março de 2021 um relatório em que se mostrou muito crítica relativamente à «resposta institucional», considerando-a «insuficiente e inadequada». Questionado sobre se a lei dos bebés roubados, actualmente a ser processada, será a resposta mais adequada, Javier Falcó defende que «chega tarde (as mães são muito idosas ou já faleceram), mas pelo menos reconhece um problema que foi silenciado muitos anos», e sublinha a necessidade de «solução e apoio» por parte do Estado para um problema que «tem sido suportado exclusivamente pelas vítimas».

No documentário, Soledad Luque denuncia a incapacidade do Estado democrático para investigar e resolver estes crimes, bem como para encontrar as crianças e os culpados, e fazer justiça, pelo que Angelo Nero pergunta porque, até agora, a Justiça espanhola arquivou os casos de bebés roubados que foram sendo denunciados.

Para o realizador do documentário, tal facto deve-se à «falta de legislação que obrigue a Justiça a agir e a apurar responsabilidades». «Por outro lado, não é difícil pensar que, com esta conduta, se esteja a proteger pessoas com determinados privilégios, que no passado podem ter sido beneficiários de tudo isto, mesmo que forma indirecta», alerta.

Vindo a público o ano passado, La Caja Vacía recebeu o prémio de melhor documentário no certame DOCS ALC do Instituto Alicantino de Cultura Juan Gil-Albert, e integrou a selecção oficial do XII Encontro Hispano-americano de Cinema e Vídeo Documental Independente «Contra el Silencio Todas las Voces» (México), do ATLANTIDOC 16 – Festival Internacional de Cinema Documental do Uruguai, do VIII Festival Cinema Ciutadà Compromés (Valência), da 14.ª Mostra Internacional de Cinema Documental de Montaverner «MON-DOC» (Valência) e da 6.ª edição do mujerDOC.

Documentário «La Caja Vacía»

Javier Falcó afirma que «a resposta do público foi muito emocionante». «Nas diversas projecções a que assisti, era palpável um profundo silêncio, provavelmente porque se sentiram comovidos com esta grande injustiça. Terminaram sempre com aplausos longos e sinceros. As pessoas que tiveram oportunidade de me transmitir a sua opinião sublinharam esse impacto e, na maior parte dos casos, não tinham conhecimento destes factos», explicou.

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