"Nunca tive problemas com os minutos. Mas, agora, é demais, não consigo...” Estas palavras ouvia-as, há uns anos, a uma trabalhadora de uma fábrica de calçado. Dizia-as, a chorar, por ter sido sujeita a um processo disciplinar (por sinal, com falhas legais e processuais), por “diminuição de produtividade”.
Já não conseguia “dar a produção” face à exigência patronal de diminuição do tempo (“minutos”) de realização das operações de fabrico de que estava incumbida.
Se bem que na empresa estivesse instituído “um “prémio de produtividade” mensal, a maior parte dos trabalhadores era, mês por mês, excluída de dele beneficiar, dado não atingirem os “objectivos” de produtividade para tal estabelecidos, tão sempre mais exigentes estes vinham a ser.
Esta situação não me era, já então, estranha, visto ser exemplo de uma conhecida concepção de “produtividade” exigida aos trabalhadores em algumas empresas (e mesmo, ainda que com diferenciação na natureza do trabalho, nalguns departamentos da administração pública), a qual, mais ou menos “quantofrénica” e “cega”, não tem em conta no tempo de trabalho mais do que a sua duração, esquecendo a intensidade desse trabalho e, mais ainda, até por não mensurável ou sequer visível, o esforço e eventualmente sofrimento que desse trabalho pode resultar para quem o realiza.
Aliás, como outros trabalhadores e trabalhadoras na mesma fábrica, também esta se queixava de sintomas de ordem músculo-esquelética com possibilidade de serem associáveis à natureza, ritmo e duração do trabalho que lhes era exigido.
As ilações então a reflectir desta situação não estão desactualizadas nem se restringem aquele sector de actividade e outros afins, industriais. De facto, noutras empresas, organizações e sectores de actividade onde se realiza trabalho (inclusive na Administração Pública), algo que, em crescendo, tem vindo a caracterizar os locais e situações de trabalho é a sobre-intensificação da sua realização, quer na sua duração e ou ritmo, quer na sobrecarga física e ou mental decorrente da natureza do trabalho (na qual cada vez mais impera a responsabilização individual não suportada pela formação adequada e suficiente, instrumentos e equipamentos necessários e correspondente tempo de execução) e nas modalidades, ditas “flexíveis”, das inerentes relações de emprego.
Dir-se ia que, pela crescente sobre-intensificação do trabalho, paradoxalmente e até de algum modo em contradição com o que é elementar da Economia do Trabalho, a uma situação macroeconómica de (quase) pleno emprego, para cada trabalhador, corresponde cada vez mais uma condição quotidiana de permanente “emprego pleno”, no sentido da solicitação até à plenitude (esgotamento) da sua capacidade física e mental para dar resposta ao ritmo, duração e natureza do trabalho que lhe são exigidos.
Mais cedo ou mais tarde (inclusive, mesmo depois da reforma), com as projecções (por exemplo, familiares) e consequências (mais imediatas ou mais diferidas) de natureza física, mental, psicossocial.
«(...) algo que, em crescendo, tem vindo a caracterizar os locais e situações de trabalho é a sobre-intensificação da sua realização, quer na sua duração e ou ritmo, quer na sobrecarga física e ou mental decorrente da natureza do trabalho (na qual cada vez mais impera a responsabilização individual não suportada pela formação adequada e suficiente, instrumentos e equipamentos necessários e correspondente tempo de execução) e nas modalidades, ditas “flexíveis”, das inerentes relações de emprego.»
A propósito, o Laboratório Português de Ambientes de Trabalho Saudáveis (LPATS), criado para estudar os ambientes de trabalho nas empresas, apresentou há dias (16/05/2023), na Conferência Internacional de Ambientes de Trabalho e Aprendizagem Saudáveis, um estudo incidente numa amostra de 1829 pessoas, entre os 18 e os 72 anos, a trabalharem em vários sectores de actividade (comércio, transportes, saúde, educação e outros).
É concluído nesse estudo que quase 80% dos trabalhadores inquiridos mostram pelo menos um dos sintomas de esgotamento (burnout), dos quais a exaustão física foi o mais referido. Esta conclusão, indissociável da sobre-intensificação do trabalho, é coerente com estudos anteriores de outras instituições com missão e competências neste domínio e, por isso, não indiciam, bem pelo contrário, melhoria das condições de trabalho em Portugal.
Dito de outro modo, este estudo acaba por ser a recorrente divulgação pública, neste caso com suporte científico, da degeneração da qualidade do trabalho pela degradação das condições de trabalho (de organização do trabalho e, por implicação, das condições de saúde mental e física no/do trabalho), algo muito escondido na "caixa negra" das empresas e da administração pública.
Esta questão é uma das que continua a carecer de maior reflexão (e sobretudo acção) social, económica, institucional, política. Não apenas porque já é muita (incomensurável) a importância de quanto o trabalho pode, de facto, ser uma via de “ganhar a vida” mas também de ganhar vida, saúde, bem-estar, realização profissional e, daí, pessoal e social; ou se, pelo contrário, uma fonte de alienação, de sofrimento, de doença, uma via para perder (ir perdendo) vida ou, mesmo, perder a vida. Também porque, dada a centralidade social e económica do trabalho, “o seu longo braço”, as condições de trabalho (e nomeadamente, as de ritmo, duração e organização dos tempos de trabalho) são indissociáveis da qualidade e segurança dos produtos e serviços (e mormente os de cuidados a prestar às pessoas, como por exemplo os de saúde1) a disponibilizar à sociedade, aos consumidores, aos clientes, aos utentes, aos cidadãos.
«É concluído nesse estudo que quase 80% dos trabalhadores inquiridos mostram pelo menos um dos sintomas de esgotamento (burnout), dos quais a exaustão física foi o mais referido.»
Voltando ao referido relatório do LPATS, a sua apresentação foi acompanhada da de um “manual de boas práticas”, o qual visa divulgar processos e medidas não só de prevenção e protecção dos trabalhadores face a riscos para a sua saúde mental e física mas, também, por implicação, para o bom funcionamento das organizações empregadoras.
Contudo, não obstante o que foi noticiado do estudo e desse complementar “manual de boas práticas” refira algo quanto a essa vertente, a importância do quanto subjazem a estas situações os modelos de gestão e de organização do trabalho é secundarizada em relação à da preponderância da incidência da análise e propostas de cariz psicológica e individual.
Quem acompanha de perto e com regularidade o que se passa nos locais e situações de trabalho (e sobretudo quem realiza esse trabalho) sabe que, nas empresas em geral e até já na Administração Pública, a organização do trabalho é determinada pela dita “gestão de recursos humanos”, a qual é cada vez mais influenciada pelos modelos neoliberais de gestão das organizações.
Ora, apesar de estes modelos serem matéria curricular universitária das Escolas de Gestão (agora ditas business schools), na sua aplicação nas organizações verificam-se muitas vezes razões para concluir que “os seres humanos já não são relevantes” (como escreve Paul Mason num livro recente2). Isto, na medida em que, consciente ou inconscientemente, de facto, a “gestão de recursos humanos” tende a ser entendida na acepção da gestão dos humanos como (meros) “recursos” (de que, entre outros, a implacabilidade do permanente controle tecnológico impondo o “fluxo tenso” da produtividade e o avaliacionismo individual de desempenho fomentando a competição inter-individual sem escrúpulos são exemplos), em vez de na acepção de gestão humana dos recursos.
O enfoque e perspectiva da análise e proposta de ordem individual, nomeadamente de cariz físico e psicológico (se não, mesmo, nalguns casos, psiquiátrico) é, sem dúvida, (também) necessária. Mas mais como complemento e tendo a ver com os efeitos e não tanto, por si só, com as reais e estruturais causas e proposta de prevenção e resolução destas situações, as quais são essencialmente de índole organizacional e gestionária.
Para além disso, a sobrevalorização deste tipo de análise com enfoque sobretudo individual subvaloriza, escamoteia mesmo, factores também de ordem política em que, mais de fundo, radicam estas situações.
«Ora, apesar de estes modelos serem matéria curricular universitária das Escolas de Gestão (agora ditas business schools), na sua aplicação nas organizações verificam-se muitas vezes razões para concluir que os seres humanos já não são relevantes"»
Neste nível, há que referir os decorrentes das políticas de emprego e de trabalho via legislação laboral, por exemplo, do quanto nos domínios da precariedade das relações de emprego, de condicionalismos de bloqueamento objectivo da contratação colectiva, da facilitação dos despedimentos, decorre para os trabalhadores a sua fragilização nas relações (individuais e colectivas) de trabalho.
Ora, essa maior fragilidade nas relações de trabalho cria, vai criando em crescendo, uma insegurança objectiva e subjectiva que, para além de por si só psicologicamente lesiva, de facto, coage os trabalhadores a "aceitarem" condições e práticas de objectiva sobre-intensificação do trabalho (duração, ritmo e ou responsabilidades) para além dos limites da sua capacidade profissional, física e ou mental.
Não pode também haver alheamento de que a repercussão física e mental destas situações pode ser agravada pelo facto de estas serem indissociáveis da condição social (por exemplo, muito, no que respeita à habitação, por exemplo, às condições habitacionais e localização desta e, daí, ao quanto tal determina a qualidade e duração dos descansos diários tendo em conta o tempo de deslocação para o e do trabalho) e, sobretudo, mais em geral, da possibilidade ou dificuldade de conciliação do trabalho com a vida familiar.
Um outro aspecto ainda que neste domínio merece (e carece de) relevância é a relação entre baixos salários e sobre-intensificação do trabalho.
No sentido de que, se é certo que, como é normal, se trabalha mais para se ganhar mais, já tão normal não é que se trabalhe mais (trabalho suplementar, duplo ou mesmo triplo emprego, “biscates” e outras vias menos formais) porque se ganha menos.
É que, do ponto de vista gestionário, ainda que de tal apenas se possam conhecer situações de excepção às regras de boa gestão, (fazer) ganhar menos para (fazer) trabalhar mais pode ser entendido e praticado como um perverso instrumento de “gestão”. Não apenas no sentido mais geral de diferenciar ainda mais o poder patronal / gestionário nas relações de emprego e de trabalho pela fragilização económica dos trabalhadores nessas relações, mas, mais especificamente, por exemplo, optando por instituir “prémios” (de “produtividade” e outros idênticos dependentes da intensificação do ritmo ou duração / organização do trabalho) para “compensar” a manutenção, intencionalmente gestionária, de baixos salários.
O que, em associação com a sobre-intensificação do trabalho, nos remete para a pertinência de uma formulação conclusiva ancorada na citação que inicia este texto: minutos curtos e meses longos.
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