|Colômbia

Gustavo Petro deixa aviso às elites: aqui ninguém dá um passo atrás

«Ministros, de agora em diante, devem realizar assembleias populares em todos os municípios, discutindo e governando, obedecendo ao mandato popular», anunciou o presidente. Mobilização trouxe milhares para as ruas da Colômbia.

Gustavo Petro, ao lado da vice-presidente Francia Marquez (à direita) e do ministro da Saúde, Guillermo Alfonso Jaramillo (à esquerda de Petro), dirige-se à multidão que se reuniu no centro de Bogotá, Colômbia, em defesa das reformas sociais propostas pelo seu Governo. 7 de Junho de 2023 
CréditosMauricio Duenas Castaneda / EPA

As elites económicas e políticas da Colômbia foram avisadas: «não se atrevam a romper com a democracia porque encontrarão um gigante: o povo nas ruas». Centenas de milhares de colombianos, em mais de 200 cidades e vilas do país, ocuparam as ruas e as avenidas em resposta à convocatória do Governo de Gustavo Petro, em defesa das reformas promovidas no seu mandato.

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Porque a saúde não é um negócio, governo de Petro apresenta reforma do sistema

«A saúde não pode ser um negócio, nem o paciente pode ser um cliente», afirmou Gustavo Petro a propósito da apresentação simbólica da reforma da Saúde, esta segunda-feira, em Bogotá.

Gustavo Petro depois de receber o projecto de reforma da saúde, em Bogotá, a 13 de Fevereiro de 2023 
Créditos / @laurisarabia

Numa cerimónia simbólica na Casa de Nariño (sede da Presidência), o projecto de reforma da Saúde passou pelas mãos de profissionais do sector, indígenas, mulheres, afrodescendentes, agricultores, jovens, crianças e pessoas de várias regiões da Colômbia até chegar às mãos do presidente da República, Gustavo Petro.

O projecto de lei, designado «El Cambio hacia una Salud para la vida» (a mudança para uma saúde para a vida), consta de 152 artigos e rege-se pelo princípio da universalidade, sendo considerado uma das propostas mais importantes do executivo de Petro no quadro da política conhecida como Paz Total.

Depois de receber a proposta das mãos do povo e dos trabalhadores da Colômbia, Petro entregou a iniciativa à ministra da Saúde, Carolina Corcho, que, por sua vez, a deixou no Congresso – onde será debatida e pode ser alterada, antes de ser promulgada pelo presidente colombiano.

A iniciativa destaca que a saúde é um direito e não deve ser um privilégio ou um negócio e, segundo afirmou Petro, o seu objectivo não é a ganância mas o direito do ser humano a viver.

«Vamos transformar o sistema para cobrir todo o território, sem excepções, e incluir todos os cidadãos, sem que haja necessidade de terem um cartão de membro», disse o chefe de Estado, citado pela TeleSur.

@petrogustavo

«Aquilo que queremos é que uma médica possa ir a casa de uma família de camponeses, por mais distante que esteja», acrescentou.

Reivindicar o direito fundamental à saúde

Sobre o projecto de reforma da Saúde, que visa reforçar a prestação de cuidados de saúde primários, a prevenção e a universalidade, a ministra da Saúde, Carolina Corcho, disse que aquilo que se procura é «reivindicar o direito fundamental à saúde».

Segundo refere a TeleSur, com esta reforma, Petro procura tirar poder às Entidades Promotoras da Saúde (EPS), as actuais intermediárias entre os contribuintes e quem presta o serviço.

Para esta terça-feira foi agendada uma jornada nacional de mobilização em apoio às reformas do executivo de Gustavo Petro, em que participam partidos políticos, sindicatos e organizações sociais.

Francisco Maltés, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), afirmou que os delegados e trabalhadores filiados na organização sindical se vão concentrar em todas as capitais dos departamentos do país para apoiar as reformas progressistas do governo, «que interpretam as necessidades que os trabalhadores tiveram nos últimos 30 anos».

Também o Partido Comunista Colombiano convocou os seus militantes a participar nesta jornada, sob o lema «Activemo-nos em defesa da vida! Por um país mais justo. A minha bandeira é a mudança».

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«Que o Congresso saiba que as reformas apresentadas não são um capricho de um Presidente (não são más, como dizem os donos do grande capital)  são os desejos, o desejo de viver, de todo o povo da Colômbia», defendeu Petro, dirigindo-se a multidão de dezenas de milhares de pessoas que se congregaram, a 7 de Junho de 2023, na cidade capital, Bogotá.

«A paz é o maior desejo da sociedade colombiana», e o primeiro requisito para a alcançar é a justiça social, afirmou. O boicote de alguns partidos de centro-direita, que apoiaram a candidatura do actual presidente, provocou o congelamento de várias reformas no congresso, pontos-chave da campanha eleitoral que elegeu Gustavo Petro.

Exemplo maior é o projecto de reforma da Saúde, com 152 artigos, que altera radicalmente as actuais circunstâncias do acesso à saúde no país. Recentrando a saúde enquanto direito humano, que não deve ser nem privilégio nem negócio, o projecto visa a criação de um sistema que abranja toda a população da Colômbia, incluindo aqueles que vivem em meios rurais, dando condições aos Centros de Atenção Primários do sistema de saúde para se deslocarem às habitações de pessoas a viver em zonas isoladas.

«Aquilo que queremos é que um médico possa ir a casa de uma família de camponeses, por mais distante que esteja», afirmou, na cerimónia de apresentação da proposta, em Fevereiro. A reforma inclui ainda o tabelamento de preços para actos médicos (aplicada, também, aos hospitais privados) e aumentos salariais para os trabalhadores da área da saúde.

O tempo é de avançar. Governo da Colômbia anuncia novas reformas para a educação, serviços públicos e pensões

O bloqueio político que está a ser feito às políticas progressistas do Governo não estão, contudo, a conseguir suster o ímpeto reivindicativo da população. «Eles pensavam que estavam [o Povo] a dormir, mas agora vão sentir a força das pessoas, com mais decisão, com muito mais decisão».

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Gustavo Petro quer escrever uma «história nova» para a Colômbia

A candidatura do Pacto Histórico, coligação de forças progressistas e de esquerda, venceu as eleições presidenciais na Colômbia. Petro definiu o triunfo como «histórico» e defendeu a aposta na paz.

Gustavo Petro e Francia Márquez, do Pacto Histórico, celebrando o triunfo nas eleições presidenciais na Colômbia 
Créditos / @petrogustavo

Com a totalidade dos votos escrutinados, a candidatura do Pacto Histórico, integrada por Gustavo Petro e Francia Márquez, obteve 11 281 013 votos (50,44%) na segunda volta das eleições presidenciais, celebradas este domingo.

Já a candidatura apoiada pelas forças de direita, composta por Rodolfo Hernández e Marelen Castillo, alcançou 10 580 412 votos (47,31% dos votos válidos), informaram as autoridades eleitorais colombianas.

Conhecidos os resultados, Petro e Francia Márquez dirigiram-se para o coliseu Movistar Arena, em Bogotá, onde se juntaram a milhares de apoiantes que ali festejavam o triunfo do Pacto Histórico, num país onde os governos, por norma, são conservadores de direita e extrema-direita.

«É história aquilo que estamos a escrever neste momento, uma história nova para a Colômbia, para a América Latina, para o mundo», disse o novo presidente eleito, sublinhando que aquilo que aí vem é «uma mudança real» e que não irá trair o eleitorado que «gritou ao país, à história, que a partir de hoje a Colômbia muda».

Num discurso conciliador, Gustavo Petro afirmou que não se trata de uma «mudança para nos vingarmos, uma mudança para construir mais ódios, uma mudança para aprofundar o sectarismo na sociedade colombiana».

O chefe do novo governo, que tomará posse a 7 de Agosto, destacou ainda que a força expressa pelo povo nas urnas vem de longe, de gerações que já não estão, porque as forças que contribuíram para o triunfo do Pacto são um acumulado de cinco séculos de resistência e rebeldia contra a injustiça, a discriminação e a desigualdade.

A paz como aposta central

Num coliseu em festa, Gustavo Petro sublinhou que o objectivo primordial do seu mandato é a paz. «Significa que não vamos, a partir deste governo, utilizar o poder em função de destruir o oponente. Significa que nos perdoamos. Significa que a oposição que teremos […] será sempre bem-vinda ao Palácio de Nariño para dialogar sobre os problemas da Colômbia», afirmou, citado pela Prensa Latina.

Falando para milhares de pessoas, Petro disse que «não pode continuar o clima político que acompanha os colombianos neste século de ódios, de confrontos, literalmente de morte, de perseguições, de isolamento».

Com o governo que irá liderar, acaba-se a perseguição política, a perseguição jurídica, «haverá apenas respeito e diálogo», disse, insistindo na criação de um grande pacto, que deve abranger toda a sociedade.

«Alcançámos um governo do povo»

Francia Márquez, vice-presidente eleita da Colômbia, saudou todos os sectores que tornaram possível o triunfo do Pacto Histórico, tendo afirmado que, ao cabo de 214 anos, se deu um passo muito importante: «alcançámos um governo do povo.»

«Vamos reconciliar este país, pela paz, sem medo, pela vida, pelas mulheres, pelos direitos da comunidade diversa LGTBQI+, pelos direitos da Mãe Terra, para erradicar o racismo estrutural», afirmou.

Lembrando todos aqueles que sofrem a violência e desigualdade no país, teve ainda palavras de reconhecimento para quem perdeu a vida nas lutas da Colômbia.

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No que toca às reformas anunciadas, durante as manifestações, por Gustavo Petro, a população da Colômbia parece já ter tomado a sua decisão. Quando o presidente anunciou os objectivos do próximo semestre (serviços públicos e educação) a multidão estrondeou: «o foco do serviço público não deve ser o empresário, que ganha dinheiro a torto e a direito, mas o utilizador do serviço público na Colômbia!».

«Vamos à reforma da Lei 30 sobre o Ensino Superior, a reforma da Lei 30 sobre o ensino superior para que os jovens colombianos possam ter acesso ao direito à educação, porque a educação também significa poder viver com dignidade». O Governo quer garantir a gratuitidade do ensino superior, a criação de novas universidades e desenvolver programas para integrar milhões de crianças (até aos seis anos) que, hoje em dia, vivem em condições de muita vulnerabilidade.

A aprovação destas medidas (as novas e as já apresentadas) no congresso, ultrapassando o bloqueio golpista, é um «pedido popular que nasce das entranhas do território excluído, do povo excluído, da base da nação colombiana». «Aprovem o que o povo da Colômbia aprovou nas urnas», pediu Petro, que admitiu fazer alterações aos projectos, desde que nenhuma ponha em causa a garantia dos «direitos de toda a gente».

Mais de 400 figuras internacionais assinam carta a denunciar o «golpe suave» que elite colombiana atenta contra o Governo

Adolfo Pérez Esquivel, Nobel da paz mexicano, Rafael Correa, antigo presidente equatoriano, Jeremy Corbyn, ex-líder dos trabalhistas ingleses, Ada Colau, prefeita de Barcelona, e o intelectual norte-americano Noam Chomsky são algumas das centenas de personalidades que denunciaram publicamente as intenções nefastas da direita na Colômbia.

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Presidenciais na Colômbia: a vitória dos ninguéns

A vitória de Gustavo Petro nas presidenciais na Colômbia abre caminho à esquerda pela primeira vez desde a independência do país.

CréditosMaurício Duenas Castaneda / EPA

No dia em que Gustavo Petro foi eleito o primeiro Presidente de esquerda da história da Colômbia (desde a sua independência, no século XIX), duas das suas testemunhas eleitorais (nas mesas de voto), no estado do Cauca, foram assassinadas a caminho das urnas.

Só neste mês em que Gustavo Petro foi eleito, foram assassinados sete activistas sociais. Até ao dia de hoje, segundo o Indepaz, já vão em 87 os activistas e 21 os ex-combatentes eliminados, só este ano.

A Colômbia continua a ser um dos países mais perigosos do mundo para quem defende direitos humanos, direitos civis, sociais, económicos, direito à água, à terra, ao pão. Um dos países mais perigosos do mundo para jovens, estudantes, sindicalistas, líderes indígenas, afro, feministas, LGBTQ+, jornalistas.

A vitória de Gustavo Petro é um enorme balde de água fria num país dominado pelas mesmas famílias desde a independência, os mesmos terratenentes, os mesmos oligarcas. E também um momento de esperança para aquela suposta «democracia» no continente americano, onde, afinal, todos os dias é um risco de morte ser-se cidadão.

Gustavo Petro, 62 anos, é um economista, ex-guerrilheiro do movimento M-19 que, até 1990, era a segunda maior guerrilha da Colômbia (atrás das FARC), guerrilha urbana sobretudo de jovens de classe média de esquerda, dissolvida nos primeiros Processos de Paz, e que deu depois origem ao partido Alianza Democratica. Foi deputado desde 1998 e senador desde 2006, presidente da câmara de Bogotá entre 2012-2015, afastado a meio do mandato e depois re-instituído num suspeito processo de impeachment. Foi candidato à presidência em 2010 (ficou em quarto lugar) e em 2018, em que disputou a segunda volta contra o ainda presidente Iván Duque.

«A vitória de Gustavo Petro é um enorme balde de água fria num país dominado pelas mesmas famílias desde a independência, os mesmos terratenentes, os mesmos oligarcas. E também um momento de esperança para aquela suposta "democracia" no continente americano, onde, afinal, todos os dias é um risco de morte ser-se cidadão.»

Petro venceu no domingo, apoiado por e numa aliança chamada Pacto Histórico, de frente progressista alargada que junta vários partidos e movimentos de esquerda, indígenas, sociais e de trabalhadores, o Partido Comunista Colombiano, o Partido dos Trabalhadores, entre muitos outros, após um mandato turbulento e violento de Iván Duque, marcado pela maior e mais longa greve geral da Colômbia nos últimos 30 anos, convulsões sociais, centenas de activistas e ex-combatentes assassinados, violência sistémica do Estado contra cidadãos.

Os media, colombianos mas também no continente, têm estado em alvoroço desde que a vitória de Petro se tornou uma possibilidade real. A revista Semana, o grupo de media que é uma espécie de rede Globo da Colômbia, cobriu de forma agressiva a primeira volta, entre o receio de que Petro ganhasse à primeira, e o apoio aberto aos dois candidatos centristas «de direita», Federico «Fico» Gutiérrez (sucessor de Duque, «uribista» que não foi a segundo mandato), e «de esquerda», Sergio Fajardo, antigo autarca de Medellín (já tinha concorrido em 2018).

Fajardo, a esquerda «moderada» e «institucional», disse logo que ia votar em branco na segunda volta, sentado em cima de um muro muito alto, porque «nem Petro nem Hernández», como antes, «nem Haddad nem Bolsonaro», «nem Maduro nem Guaidó»: «Há muita expectativa. As promessas de resolver rapidamente o desconforto e o inconformismo, que é o que é o populismo, serão frustradas muito rapidamente. O que vem depois? Uma possibilidade é a explosão [social]. Eu vejo uma imagem muito complicada, espero estar errado. A união do país é muito necessária, mas não vejo como vão fazer isso. Frustração, e depois da frustração vem a explosão ou o autoritarismo», disse ao El País. E o que veio à Colômbia nos últimos 100 anos, senão frustração, explosão e autoritarismo?

Também a BBC Mundo passou grande parte da campanha a explicar o que é a «Petrofobia»: o medo do castro-chavismo, a potencial venezualização da Colômbia, os fantasmas do costume, os mesmos que elegeram Bolsonaro no Brasil. O pânico das palavras «povo» e «democracia» faz tremer até os militares, como dizia um conselheiro do ainda Presidente Duque, na Semana, sobre uma potencial eleição de Petro significar uma «nova ordem». Esta «passa não só por afectar a liberdade e a propriedade privada, mas também substituir as actuais forças militares [polícia nacional e o exército]», que, afirma o conselheiro (sem se rir), são «apartidárias».

«Não roubar, não mentir, não trair»: era o mantra de Rodolfo Hernández, 77 anos, milionário, engenheiro, ex-autarca de Bucaramanga, capital do estado de Santander (um dos mais prósperos: café, cacau, minério, petróleo), vizinho à Venezuela. Veio do fundo da tabela de intenções de voto, sem (aparente) plataforma política, sem apoio no Senado, sem (aparentes) «padrinhos» à esquerda ou à direita, alvo da desconfiança de todos, mas de artigos elogiosos na Semana entre grupos de empresários, dentro e fora do país, criando uma «Liga dos Governantes Anti-Corrupção» (LIGA), numa campanha anunciada desde Miami, sem presenças públicas, recusando debates, dirigida de e para as redes sociais, com muitos emojis, vídeos curtos e hashtags, e foi galgando terreno até à segunda volta.

A «estratégia do caracol» de Hernández: «Ocultar-se até ganhar a Presidência», disse o El País. Tornou-se o «velhinho do Tik Tok», onde pôde «controlar a sua narrativa e repetir frases que tanto afecto granjearam entre os cidadãos: "Acabar com os ladrões e os corruptos."» Tentou distanciar-se da «esquerda» e da «direita» mas, apesar dos nove milhões de votos, acabou engolido pelo abraço de urso do uribismo. Hernández é um pária, um Trump «anti-sistema» lançado desde um dos estados mais conservadores e paramilitarizados do país, para uma plataforma supostamente independente de empresários, empreendedores self-made men, tentando romper com o lastro de Uribe e alertando para a «venezualização» da Colômbia com a potencial vitória de Petro.

Violento, admirador confesso de Hitler, negando, por exemplo, a existência de violência de género (culpando as próprias mulheres por «saírem de casa» para trabalhar em vez de cuidar dos filhos), com intenções de desfazer leis progressistas (contra feminicídio, em defesa de territórios indígenas), e com uma agenda neo-liberal de desregulação, baixa de impostos para grandes fortunas, e de incentivo à precarização e «grandes investimentos» estrangeiros em sectores-chave.

Apesar da derrota de Hernández, a simples existência destes «monstros híbridos» em defesa dos interesses instalados, num país que nunca se descolonizou como a Colômbia, não pode deixar de preocupar a reacção dos próximos anos à vitória de Petro. Figuras como Rodolfo Hernández ou Jair Bolsonaro, Jeanine Áñez (Bolívia) ou Keiko Fujimori (Perú), ou o derrotado José Antonio Kast (no Chile, contra Boric), abertamente violentas e racistas, profundamente conservadoras na política, proto-fascistas nos costumes e neo-liberais na economia, próximas do paramilitarismo, de facções reaccionárias no exército e do saque de recursos naturais (minérios e agro-negócio), não são, ao contrário do que diz Oliver Stuenkel no Estadão, um «sinal da profunda disfunção democrática na região», nem o reflexo da «crise da democracia na América Latina». É o poder e o capital reorganizando-se e reagindo à real possibilidade de mudança que governos e movimentos progressistas de esquerda, liderados por Boric, Petro ou Lula, podem representar.

«Apesar da derrota de Hernández, a simples existência destes «monstros híbridos» em defesa dos interesses instalados, num país que nunca se descolonizou como a Colômbia, não pode deixar de preocupar a reacção dos próximos anos à vitória de Petro.»

Quão perigoso será Petro Gustavo para o poder burguês, oligarca, instituído na Colômbia, que desde a sua independência nunca teve um presidente de esquerda eleito democraticamente, um candidato de esquerda de facto que não tenha sido assassinado (como Gaitán ou Pizarro), para que o capital se organizasse atrás de um pária nazista como Hernández? Quão perigoso teria sido, afinal, o moderado professor Haddad para que o capital se organizasse para colocar Bolsonaro no poder, protegendo os seus interesses da bala, do boi e da bíblia?

Os ninguéns

«Saúdo os ninguéns da Colômbia», disse Francia Márquez, eleita domingo vice-presidente da Colômbia. A activista ambientalista, feminista, advogada, 41 anos, é a primeira afro-colombiana a alcançar um dos mais altos cargos da nação. Isto é profundamente simbólico num país que tem uma das Constituições mais avançadas da América Latina no que diz respeito ao reconhecimento de povos originários, grupos étnicos, igualdade de género – mas só no papel. Na prática, são mulheres, indígenas, camponeses, afro-colombianos, os que mais têm sofrido da violência do conflito armado, mesmo (e sobretudo) após o Processo de Paz. Porque são eles que, em regiões ricas em minérios, por exemplo, se opõem ao Estado e aos grupos paramilitares coniventes com o Estado, na defesa das suas terras, das suas famílias e comunidades.

Numa entrevista à Rádio Caracol, em Fevereiro, Francia Márquez disse que seria a voz dos ninguéns na Casa de Nariño: «Nós não somos uma minoria, isso é o que as 47 famílias que governaram este país nos fizeram crer. Se devemos ter medo de alguém, é da elite que nos tem governado e que governou de costas para o povo, de costas para a sua gente, e que nos submeteu à barbárie e ao medo. Na minha região [o Cauca] não pára a violência, não pára o conflito armado porque há quem tenha semeado medo para manter-se no poder, para nos vender segurança democrática. Isso é o que tenho visto na política. Eu nem era política, era uma líder social que estava na luta. Mas cansei-me de não ver mudanças para o meu país, não ver mudanças para as maiorias empobrecidas, não ver mudanças para as etnias, para as mulheres, para os povos originários, para os camponeses, não ver mudanças para as juventudes que saem à rua a exigir educação e os assassinam com as balas da pátria. Simplesmente estigmatizando-os como vândalos, terroristas, criminosos. Esses que foram "marcados", os ninguéns – eu represento essas pessoas. Os ninguéns que não tiveram voz neste país.»

No domingo à noite, na cobertura das eleições em directo para o jornal Espectador, um comentador dizia que a vitória de Petro e Francia era a vitória de todos os que tinham caído pela Colômbia, gerações e gerações de jovens que se perderam para a violência durante o último século (mesmo com dois Processos de Paz), para que se pudesse chegar aqui.

E este mandato de Iván Duque foi uma descida ao abismo. Quando tomou posse em 2018, o país vivia uma redução significativa da violência na sequência dos Acordos de Paz, o número mais baixo de homicídios dos últimos 40 anos. Mas, diz o Espectador, «a sua recusa em entender que a implementação do Acordo era essencial para consolidar aquela paz que começava a ser vivida levou-nos aos cenários de guerra que vários territórios da geografia nacional sofrem hoje. Em meio do confronto com novos actores armados, a força pública voltou à sua história para bombardear campos onde foram encontradas crianças. Civis morreram em aldeias na decorrência de operações militares, nas quais não foram tomadas precauções mínimas exigidas pelo Direito Internacional.»

«E este mandato de Iván Duque foi uma descida ao abismo. Quando tomou posse em 2018, o país vivia uma redução significativa da violência na sequência dos Acordos de Paz, o número mais baixo de homicídios dos últimos 40 anos.»

E agora? A vitória de Petro e do Pacto Histórico consolida enfim o Processo de Paz que, ironicamente, deu o Prémio Nobel a Juan Manuel Santos (2016), dissolveu as FARC e abriu as portas à integração de milhares de ex-combatentes na sociedade, no processo político e democrático. Foram precisos seis anos e centenas mortos para que o «Sim» finalmente vencesse. Agora, unir um país profundamente dividido entre um neo-conservadorismo reaccionário e a possibilidade de emancipação de uma massa de «ninguéns» não será fácil.

Até porque o capital e aquelas 47 famílias que sempre governaram a Colômbia não vão descansar. O uribismo parece ter sido derrotado nas urnas, mas há pelo menos 30 anos que Álvaro Uribe, pai do paramilitarismo narco, e os seus serviçais mandam, de facto, na segurança, nas forças armadas, nos negócios e na distribuição da riqueza: desde a gestão em modo gangster dos pacotes de milhões em «apoio anti-terrorista» dos EUA, à entrada como membro observador da NATO, à violação de direitos humanos, «falsos positivos» e eliminação sistemática de opositores políticos, até à militarização das forças policiais.

«A "onda progressista de esquerda" tem uma nova oportunidade, 20 anos depois das grandes mudanças, em que Lula, Chávez, Kirchner, Mujica e Morales chegaram ao poder. É bom que agora venham para ficar.»

As reacções já começaram. O embaixador colombiano nos EUA demitiu-se no dia seguinte. O secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, disse «esperamos continuar a nossa sólida associação com o presidente eleito». A Semana tinha já uma série de artigos (prontos) a responder à vitória de Petro – na economia, na política e nas forças armadas: o ex-presidente conservador Andres Pastrana diz que «confiamos que [Petro] respeite as instituições». O General Navarro, comandante das Forças Militares, diz: «Garantiremos a ordem constitucional». Na economia, a Semana lista as propostas petristas «que causam temores» aos empresários: impostos sobre as grandes fortunas, desinvestimento em combustíveis fósseis, mercado laboral público, instituição do salário mínimo, reforma das pensões e re-negociação de tratados internacionais de comércio, nomeadamente questionando a dependência dos EUA.

Com a vitória da esquerda progressista no Chile, no Peru, nas Honduras e agora num dos países mais ricos e populoso do continente, e as eleições no Brasil em Outubro anunciar o regresso de Lula da Silva, não admira que a The Economist desta semana fale da «decadência» da democracia na América Latina. A «onda progressista de esquerda» tem uma nova oportunidade, 20 anos depois das grandes mudanças, em que Lula, Chávez, Kirchner, Mujica e Morales chegaram ao poder. É bom que agora venham para ficar.

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«Os poderes tradicionais da Colômbia estão a organizar-se para restaurar uma ordem marcada por desigualdades extremas, destruição ambiental e violência patrocinada pelo Estado», afirmam os signatários.

No seu discurso, Gustavo Petro não deixou de assinalar as semelhanças do que se está a passar na Colômbia com o processo de golpe contra o Presidente eleito do Perú, Pedro Castillo. Mas o que parece, não é: «se eles se atreverem a violar o mandato popular, o povo da Colômbia sairá de cada esquina, debaixo de cada pedra, em cada rua, em cada pavimento, em cada município para defender o triunfo e o mandato popular com as suas mãos limpas, felizes e não violentas». O Governo colombiano não está sozinho.

Petro assumiu um último compromisso: «este Governo está ao vosso [Povo] serviço até à hora da sua morte». «Chegou o momento de lutar» e uma coisa é certa, «o Povo não se rende».

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