Para alguns, será uma surpresa que o maior aplauso da noite num auditório de centenas de pessoas à espera de «estrelas» como o presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, ou da Colômbia, Gustavo Petro, tivesse sido para uma cientista: a cubana Belinda Sánchez Ramírez, directora do Centro de Imunologia Molecular, uma das «criadoras» da vacina cubana contra a covid-19.
Mas é esse o propósito da Cimeira dos Povos, a contra-cimeira ou cimeira alternativa, paralela à reunião dos chefes de Estado da União Europeia com os países da América Latina e Caribe (CELAC). Se na segunda se falou de Putin, da guerra na Ucrânia, da NATO, de segurança, de negócios e de investimento; na primeira, discutiu-se a paz, a soberania, a cooperação internacional, o clima, a saúde, a dívida, o fim de bloqueios e de ingerências
Como disse o presidente cubano Díaz-Canel, que visitou, fora do alinhamento previsto, o Festival da Solidariedade, que encerrou o primeiro dia da Cimeira dos Povos: «Como não havíamos de vir à verdadeira cimeira, esta, que é onde os povos estão?»
E vieram povos de Cuba, da Colômbia, do Perú, da Bolívia, da Venezuela, do Equador, do Brasil, representantes de associações de solidariedade de toda a Europa, como a Associação de Amizade Portugal-Cuba também presente, grupos de latino-americanos na diáspora, mais de 200 organizações políticas, sociais e sindicais da América Latina. «A UE queria decidir quem é a sociedade civil. Estão a discutir o mundo a partir de um bunker. E aqui está o verdadeiro povo: os que dizemos à Europa que aprenda com uma América Latina e o Caribe pintados de vermelho», disse o deputado espanhol da Izquierda Unida no Parlamento Europeu, Manu Pineda, do grupo confederal GUE/NGL/A Esquerda no PE, um dos co-organizadores da Cimeira.
Diplomacia pela paz
O segundo grande aplauso da noite foi para Gustavo Petro que, num discurso sombrio, disse que «enquanto a Europa e os Estados Unidos vão em direcção ao fascismo, enquanto o Norte se “fascitiza”», numa «era que se acaba sem saber ainda bem qual é a era que vem», é necessário afirmar «o papel da América Latina, hoje, neste século», num «mundo em transformação» perante as «policrises» que vivemos: a «crise pandémica, a crise climática, a crise do neoliberalismo».
Perante estas crises, a resposta da América Latina terá de assentar numa posição «não-alinhada» e resistente a «um discurso dominante da Europa» e à «crescente militarização da União Europeia», disse Paula Polanco, do movimento de solidariedade internacional belga, INTAL. Mas também no «multilateralismo» e na «multipolaridade», segundo a brasileira Mónica Valente, do Fórum de São Paulo, que afirmou que a Cimeira dos Povos demonstra a «irmandade entre o povo latino-americano e caribenho e o europeu», pedindo o «fim do bloqueio a Cuba e à Venezuela», o «respeito pela soberania dos nossos povos e países» e a «solução pacífica dos conflitos».
Num contexto em que «o imperialismo desenvolve uma ofensiva que trata de dividir o mundo em blocos de Estados, desconectados e enfrentando-se entre si, e intensifica todo o tipo de provocações, bloqueios, pressões e medidas coercivas unilaterais contra os povos que não lhe são submissos e não se põem ao serviço dos seus interesses, provocando destruição e morte em muitas zonas do planeta», diz o comunicado conjunto anunciado no final da Cimeira dos Povos, esta é «uma oportunidade para avançar a criação de um mundo multipolar, com relações multilaterais que permitam progredir na paz da humanidade».
Contra ingerências, dívidas e sanções
No Festival da Solidariedade, no primeiro dia da Cimeira, Luís Arce afirmou-se como o presidente de «um país soberano que disse não, não ao golpe de estado»: a Bolívia. Porque outro país agora enfrenta um golpe semelhante: o Peru. Aída García-Naranjo, antiga Ministra da Mulher e Desenvolvimento Social do Peru, pediu a solidariedade urgente de todos, denunciando a presidente interina do Peru, Dina Boluarte, como «responsável pelo uso excessivo da força e o assassinato de dezenas de peruanos indígenas», na sequência do golpe que depôs Pedro Castillo, em Dezembro de 2022.
Hoje de manhã, num dos painéis em que se discutiram «as novas formas de guerra suja», como «o golpismo, o “lawfare”, a desinformação, as sanções e a guerra económica», e que contou com a participação de representantes da Bolívia, Espanha, Cuba, Equador, Peru, Brasil e Venezuela, a deputada do PCP ao PE, Sandra Pereira, denunciou a forma como o «imperialismo trata de reduzir a consciência dos povos sobre os seus legítimos direitos e aspirações», intensificando «o ataque às liberdades e direitos, a falsificação, a discriminação, a manipulação, a mentira, a censura da informação, a reescrita da história, com a finalidade de se impor um pensamento único e vulgarizar concepções reaccionárias e fascistas na promoção do anti-comunismo, para atacar a democracia».
É neste contexto que «estas formas de “guerras doces” são impostas, sob o pretexto dos direitos humanos ou das lutas contra o terrorismo», disse o eurodeputado Marc Botenga, do Partido dos Trabalhadores da Bélgica. «É importante desmascarar a hipocrisia deste discurso. Hipocrisia que podemos ver nas sanções e a quem elas são impostas, como Cuba ou a Venezuela. Mas há uma série de países a que se permitem todas as violações de direitos humanos e direitos internacionais, e contra os quais a UE ou os EUA nunca impõem sanções. Evidentemente, Israel, que, com o apoio dos EUA e a UE, oprime, ocupa e coloniza o povo palestiniano».
Explicando como o sistema de sanções tem sido «o eixo da política exterior norte-americana nos últimos 30 anos», William Castillo, do Observatório Venezuelano Anti-Bloqueio, detalhou a forma como a Venezuela perdeu cerca de 90% dos seus ingressos em divisa, através das 930 sanções directas e indirectas, que afectam 60-70% da indústria petrolífera, restringem o comércio exterior do país e o acesso a alimentos e medicamentos, «e inclusive durante a pandemia, a vacinas». «Só com a cooperação da China, da Rússia e de Cuba, a Venezuela pôde aceder a medicamentos e vacinas para enfrentar a covid-19», disse. «O que aconteceria à população de uma qualquer economia europeia desenvolvida se perdesse 90% dos seus ingressos?».
«As sanções não são um substituto da guerra: são uma forma de guerra», afirmou Castillo. O seu objectivo é «asfixiar, deteriorar a economia» e «produzir crises sociais, crises humanitárias, crises políticas, para forçar mudanças de regime».
O presidente do Instituto Cubano da Amizade com os Povos (ICAP), Fernando González Llort, disse como os novos tipos de sanções e medidas coercivas contra países, bem como os novos mecanismos de desinformação, «fake news» e sabotagem, são «velhas maneiras» de fazer a «guerra suja», «usando as novas ferramentas deste tempo».
Porque Cuba vive há mais de 60 anos sob sanções, a Cimeira dos Povos começou ontem com uma sessão de denúncia e solidariedade contra o bloqueio e um anúncio inédito: a convocatória de um Tribunal Internacional contra o Bloqueio dos Estados Unidos a Cuba, que ocorrerá em Bruxelas, no Parlamento Europeu, dias 16 e 17 de Novembro.
Subscrito pela Associação Internacional de Juristas Democráticos, pelo grupo The Left no Parlamento Europeu, pelo Grémio Nacional de Advogados dos Estados Unidos, entre organizações sindicais e associações de cubanos residentes na Europa, esta convocatória para um Tribunal Internacional denuncia o bloqueio económico e financeiro extra-territorial imposto pelos Estados Unidos a Cuba há mais de seis décadas, e a inclusão de Cuba na lista de supostos países patrocinadores do terrorismo.
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