«Diga!»
Não é raro que ao entrarmos num estabelecimento para algo relacionado com a respectiva actividade, sejamos, de chofre (sem qualquer saudação prévia), interpelados desta forma por trabalhadores, responsáveis ou mesmo donos do estabelecimento.
Há quem não dê qualquer atenção ou desvalorize a crítica a este tipo de «atendimento», atribuindo-o à banal «falta de chá». Contudo, talvez lhe deva ser dada alguma atenção.
Já nos referimos noutro local à relação entre trabalho e consumo1, relação quase óbvia, visto que, conforme as circunstâncias, todos assumimos uma ou outra das condições de trabalhador ou de consumidor.
Aí, nesse artigo de há dois anos, o enfoque foi no quanto o que consumimos pode determinar o quanto e como trabalhamos. Na medida em que nos imponha a sujeição à violação dos direitos laborais, à sobre-intensificação do trabalho em duração e ritmo, mesmo a más condições de trabalho com riscos para a saúde e até para a vida. Porque, referindo ainda o exemplo real de alguém que se citava nesse artigo, «se tem a casa e o novo carro para pagar».
Mas se, para o bem ou para o mal, as condições em que trabalhamos se repercutem em nós próprios como trabalhadores e como pessoas, também sempre se projectam nos outros, visto que o resultado do nosso trabalho em determinada organização (por exemplo, um estabelecimento comercial ou de serviços ou um departamento público) é sempre condição de esta concretizar melhor ou pior os objectivos da actividade que desenvolve. E assim satisfazer melhor ou pior os direitos ou interesses dos seus clientes ou utentes.
Ainda há pouco tempo, a propósito do trabalho (e greve) dos médicos, desenvolvemos neste jornal esta vertente do assunto.2
A qualidade de uma organização é indissociável da qualidade da relação material e imaterial que mantém com o seu contexto (de mercado, mas também social). Por isso, quando reportada à actividade (privada ou pública) que exerce, não depende apenas das exigências legais e de outros factores mais objectivos. No caso de um estabelecimento comercial, por exemplo, do preço, da durabilidade, da segurança, da higiene, da garantia de manutenção e reparação dos produtos que comercializa. No caso de um estabelecimento de serviços, pelo menos, da eficácia, da eficiência, da prontidão com que estes são prestados.
Depende também de algo menos material e tangível, mais subjectivo, mas que, apesar de um estabelecimento ou serviço satisfazer os requisitos legais e materiais de qualidade já referidos, pode implicar a sua desconceituação por não garantir a qualidade das relações sociais com os seus clientes ou utentes.
Alguém argumentará, com razão, que sempre é melhor o lacónico «diga!» sendo presencial do que a «relação» com um teclado qualquer em que esta se reduz aos «pi-pis» de cliques nas teclas numeradas, dos quais depende sermos (se formos) «atendidos» por esta via desumanizada e desumanizante (e muitas vezes desesperante).
Também é possível que haja trabalhadores ou responsáveis de um estabelecimento comercial ou de serviços que considerem dispensável, se não humilhante, incluírem no modo de relacionamento com os clientes ou utentes uma expressão mais afável e sociável (por exemplo, no mínimo, um banal «faz favor»), porventura por, consciente ou inconscientemente, atribuírem a esta expressão coloquial um significado literal e descontextualizado e, assim, agirem em coerência com o entendimento de que nessa relação o cliente ou utente «não lhe está a fazer favor nenhum». Se é que não entendem mesmo que, pelo contrário, é o cliente ou utente que está a beneficiar de um favor da sua parte.
«Alguém argumentará, com razão, que sempre é melhor o lacónico "diga!" sendo presencial do que a «relação» com um teclado qualquer em que esta se reduz aos "pi-pis" de cliques nas teclas numeradas, dos quais depende sermos (se formos) "atendidos" por esta via desumanizada e desumanizante (e muitas vezes desesperante).»
Questão também aqui pertinente é a de se saber até que ponto a gestão do estabelecimento em causa se reconhece no conceito de «responsabilidade social da empresa» (RSE) e integrando neste o requisito de urbanidade e sociabilidade nas relações sociais com os seus clientes ou utentes e, em geral, com os cidadãos. O que pode não estar garantido se a linha do modelo de gestão empresarial for aquele, nas últimas décadas de novo muito em voga como teoria e como prática, de que, há mais de meio século, foi precursor um Prémio Nobel da Economia: «A responsabilidade social duma empresa é obter lucros»3
A importância das relações sociais nas relações comerciais e de serviços que aqui se releva é indiscutível numa relação de cuidados às pessoas (de saúde, de solidariedade social, de socorro, etc), até porque neste caso a qualidade do relacionamento social deve ser considerada um requisito intrínseco dos próprios cuidados.
De qualquer modo, mesmo para as relações comerciais e de serviços em geral, essa importância não decorre apenas de serem um indicador de qualidade do estabelecimento em causa e, por isso, de fidelização ou rejeição desse estabelecimento por parte dos seus clientes ou utentes. Logo, para um estabelecimento lucrativo privado poder ser um factor de lucro ou prejuízo e para um estabelecimento público um factor de maior ou menor qualidade da prestação do serviço público que a missão deste prossegue.
Tem também a ver, numa perspectiva sociológica e cívica, com o facto de ser o modo dessa relação social com clientes ou utentes que pode conferir a uma relação comercial (de índole essencialmente mercantil) ou de serviços (mais ou menos burocratizada) alguma urbanidade e sociabilidade.
É certo que, por razões que não cabe aqui desenvolver, urbanidade, sociabilidade e mesmo humanidade são requisitos de vivência em sociedade que estão cada vez mais em desuso.
A propósito, se é certo que é exigível urbanidade e sociabilidade a quem nestas relações tem a função de atender, urbanidade e sociabilidade recíprocas também são exigíveis a quem nelas é atendido (clientes ou utentes). O que, com cada vez mais frequência (até porque uma das alterações em curso na gestão e organização do trabalho é o crescente contacto directo, sem mediação organizacional, entre trabalhadores e clientes ou utentes), também não acontece da parte destes últimos, como se conclui de muitas situações vindas a público de violência no trabalho associadas a estas relações em que são vítimas trabalhadores ao serviço de estabelecimentos privados e públicos. Situações que, aliás, muitas vezes têm causa remota em problemas de gestão, organização ou condições de trabalho no estabelecimento em causa, dificultando ou impossibilitando a boa e pronta resposta aos direitos ou interesses dos clientes ou utentes.
«Urbanidade, sociabilidade e mesmo humanidade são requisitos de vivência em sociedade que estão cada vez mais em desuso.»
A reflexão deste assunto não se esgota nas relações entre as pessoas individualmente envolvidas nessas relações, entre quem atende e quem é atendido. Convoca as relações entre as organizações e as pessoas, quer como trabalhadores, quer como clientes ou utentes.
De facto, as organizações consubstanciam-se nas pessoas que as gerem e que nela trabalham. Mas, se assim é, se são as pessoas que fazem as organizações, também as organizações fazem (ou desfazem…) as pessoas.
Tem isto a ver com a pertinência, no âmbito do assunto deste texto, de se perguntar até que ponto em determinada organização ou estabelecimento a responsabilidade pelo modo de relacionamento social com clientes ou utentes é ou não também atribuível aos modelos e práticas de gestão, bem como às relações e condições de emprego e de trabalho existentes nessa organização. E não só ao desempenho profissional estritamente individual de quem como trabalhador está incumbido dessa função.
Nomeadamente, quanto à sua selecção, integração, formação, enquadramento hierárquico-profissional e condições de trabalho propriamente ditas. Condições de emprego e de trabalho estas que, para o bem ou para o mal, directa ou indirectamente, se repercutem no modo de relacionamento social dos trabalhadores (e, por estes, da organização) com clientes ou utentes. Ainda que a estes tal não seja perceptível, visto que, em regra, as organizações empregadoras, mormente quanto a relações e condições de trabalho nelas existentes, são muito uma «caixa negra».
Voltando ao tal «diga!» e à maior ou menor crítica que se faça a essa expressão (para já não referir a outras de boçal falta de respeito ou mesmo insulto), se entendida como falta de urbanidade e sociabilidade nas relações comerciais ou de serviços, sim, talvez se possa dever à tal «falta de chá».
Contudo, poderá não ser apenas devido à «falta de chá» entendida esta expressão como falta de educação cívico-relacional de ordem individual, isto é, com origem estritamente familiar, escolar ou social de quem a desempenhar essa função profissional.
Pode também ter por causa, no contexto desta relação biunívoca entre trabalho e consumo, à «falta de chá» organizacional, ou seja, ser consequência dos modelos (ou falta destes) de gestão das pessoas e suas condições de emprego e de trabalho nas empresas/estabelecimentos ou departamentos públicos em causa.
- 1. «Trabalho e consumo: o "lado lunar" de uma relação biunívoca» (Público, 23/06/2021).
- 2. «Greve dos médicos: o longo braço do trabalho» (AbrilAbril, 11/07/2023).
- 3. Milton Freedman (EUA, 1912-2006, Prémio Nobel da Economia em 1976) escreveu isto na revista New York Times Magazine em 13/09/1970.
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