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Administração Pública: «lideranças», serviço público e condições de trabalho

Uma questão que se coloca é a de se, em regra, se nomeiam (ou propõem) «lideranças» na honestidade do reconhecimento da efectiva reunião destes requisitos.

«O aumento salarial é possível e necessário para combater esta injustiça», realçou Jerónimo de Sousa
Créditos / Revista Bit

«Nós temos lideranças fracas». A frase é da Ministra da Saúde, em 12 de Junho, na Assembleia da República, sobre situações relacionadas com o Serviço Nacional de Saúde.

Não se visa aqui qualquer análise ou opinião sobre essas situações e muito menos, em particular, com a área de «liderança» (gestão hospitalar) à qual essa governante se referia. Aliás, tendo a ver com outras áreas de «liderança», diversas situações anteriores e posteriores conhecidas, relacionadas com este assunto, poderiam ser mote deste texto sem que nele algo de essencial fosse alterado.

Pretende-se apenas, assente em observação-participante de muitos anos, uma modesta reflexão genérica sobre referências e práticas das «lideranças» em geral (sob a reserva de que em qualquer exercício não se pode tomar o todo pela parte) na Administração Pública (AP) central e local. E mesmo não só na AP (direcção-geral, direcção de serviços), pois que, com a adequada adaptação, não é forçado extrapolar o essencial para outros cargos de «liderança», nomeadamente, de uma empresa (administração executiva ou gerência) e, mesmo, considerando os condicionalismos muito próprios, em cargos políticos propriamente ditos a nível local, regional ou nacional.

Algo prévio a notar, tendo em conta essa frase e a qualidade de quem a assumiu, é o facto de sobre problemas na/da Administração Pública (AP) ser atribuída a causa desses problemas não, como é mais habitual, à Função (aos funcionários públicos, no que respeita à sua suficiência, qualificação, formação, capacidades, idade, etc.), mas à Direcção, às «lideranças». 

Do que se deduz um reconhecimento de que problemas fundamentais da AP podem ser mais de direcção que de função, terem a ver mais com quem decide («lidera») do que com quem executa.

Assim, para além do muito que há escrito e dito sobre o assunto e cuja referência não se compadece com este espaço, poder-se-ão ponderar três tipos de eventuais problemas de direcção/«liderança» na AP, a qualquer nível (departamental, organizacional ou sectorial) e âmbito (local, regional ou nacional):

1-Um problema de sentido: a «liderança» orientar-se mais para dentro do que para fora.

Mais do que o interesse público e o serviço público serem foco principal de concentração de interesses corporativos e mesmo, pior, de interesses pessoais (ou pelo menos meramente profissionais) dos próprios dirigentes. Ou, ainda, os procedimentos burocráticos mais ou menos estéreis (se não contraproducentes) do ponto vista da sua efectiva utilidade como instrumentos dos resultados de serviço público que a missão da organização exige. 

2-Um problema de natureza: ser critério de direcção e «liderança», essencialmente, o poder.

O poder, no sentido de que o que se concebe e decide tem sobretudo por fim ganhar (ou, pelo menos, não perder) poder pessoal. O que, verdadeiramente, constitui uma degeneração do poder como meio, como instrumento de se almejarem fins públicos, como possibilidades (e responsabilidades) de decisão indispensáveis (por exemplo, na forma de autonomia de decisão técnica, gestionária ou mesmo financeira) de que se está investido para o exercício profícuo do cargo visando concretizar os objectivos reportados à missão da organização ou departamento que se dirige /«lidera». 

A verificar-se, esta degeneração da natureza da «liderança» é (mais) uma forma de «poderose», na acepção da «análise clínica» desta patologia organizacional e ou profissional a que já nos referimos noutro local.1

3-Um problema de competências e capacidades.

Para se preencher (seleccionar/nomear, por um lado e, por outro, aceitar) um cargo de direcção na AP (como, aliás, em qualquer organização), são exigíveis, naturalmente, requisitos de acordo com a natureza e área desse cargo: qualificação, experiência, capacidades, o apoio de uma equipa, meios necessários (de diversa ordem), etc.

Porém, dois requisitos há que, mais gerais, são primordiais: conhecer bem a área da acção da organização ou departamento em causa e, sobretudo, ter um projecto lógico e exequível para essa área em função dos objectivos e contexto do exercício do cargo.

Se quanto ao conhecimento da área em causa não há muito a acrescentar para justificar a sua importância e imprescindível necessidade (a não ser no quanto a subvertem situações que em voz corrente por aí se apelidam de «lideranças-turbo» ou tipo «portas giratórias»), já quanto ao requisito de se demonstrar um projecto lógico e exequível, se bem que não esteja dissociado do que precede, algo há a acrescentar.

Um projecto lógico, no sentido de coerente com a missão e objectivos da missão da organização ou departamento em causa, quer do ponto de vista estrutural (estatutário), quer do ponto de vista conjuntural quanto aos circunstanciais objectivos específicos a visar.

Um projecto exequível, no sentido, claro, da sua garantida sustentação e sustentabilidade política e financeira.

Mas também exequível no sentido de o «líder» reunir condições profissionais, pessoais e sociais para concretizar tal projecto. Condições que não se limitam às suas competências académicas, técnicas e de gestão (para cuja avaliação objectiva estão constituídos e instituídos inerentes órgãos e processos) mas que abrangem também a efectiva disponibilidade pessoal e a autoridade moral e ética, as quais, se eventualmente fragilizadas, irão mais cedo ou mais tarde pôr em causa os resultados de serviço público exigíveis ao exercício do cargo ou, mesmo, a possibilidade de «liderança» e, daí, o próprio projecto.

Uma questão que então se coloca é a de se, em regra, se nomeiam (ou propõem) «lideranças» na honestidade do reconhecimento da efectiva reunião destes requisitos. Outra questão, correspondente, é a de se, em regra, é na honestidade da consciência de se deterem estes requisitos e da responsabilidade na sua efectiva assunção e concretização dos objectivos de serviço público que lhes são exigíveis que se aceitam cargos de «liderança».

Podemos sintetizar estas duas questões perguntando: 

– vê-se e depois nomeia-se, ou nomeia-se e depois vê-se?

– vê-se e depois aceita-se, ou aceita-se e depois vê-se?

Ora, não serão poucos (de qualquer modo sempre serão demasiados) os dirigentes («líderes») que não são nomeados (ou propostos) ou aceitam os cargos em função desses requisitos, preponderando: 

- na nomeação (ou na exclusão, também é possibilidade), o critério estritamente partidário (se bem que este possa ser legítimo em função de determinada necessidade bem fundamentada, por exemplo, de «confiança política») ou o favorecimento de ordem pessoal, podendo-lhe, ou não, estar associado algum interesse material imediato ou diferido;

- na aceitação, o estrito e imediato(ista) interesse pessoal ou meramente profissional e ou a «sede» de poder pelo poder (conforme o referido em 2.) e não tanto a honestidade de aceitar ou não na consciência de se reunirem ou não os requisitos indispensáveis para o exercício do cargo, na noção da(s) responsabilidade(s) que a natureza deste implica e na firme convicção no projecto.

Por outro lado, na mesma linha de análise, situações há em que o que de facto (não obstante a sua apresentação formal) subjaz ao afastamento de dirigentes/«líderes» é, com consequente prejuízo para a concretização das políticas públicas que se pressupõe terem estado na base da nomeação, a convicção, persistência e capacidade no prosseguimento do projecto em coerência com os objectivos delineados assente em reconhecido bom conhecimento da área e da missão da respectiva organização ou departamento.

Riscos nesta matéria, os mais relevantes são os exógenos, as eventuais consequências económicas, sociais e políticas, os riscos para a suficiência qualidade e oportunidade do serviço público cuja prestação é exigida e exigível à organização ou departamento em causa.

Riscos, também, do ponto de vista endógeno, na desacreditação externa e fragilização organizacional e funcional dessa organização ou departamento. E, por implicação, para o próprio «líder», no mínimo na sua desconceituação profissional e social.

«Os mais relevantes [riscos] são os exógenos, as eventuais consequências económicas, sociais e políticas, os riscos para a suficiência qualidade e oportunidade do serviço público cuja prestação é exigida e exigível à organização ou departamento em causa.»

Mas riscos, ainda, no domínio do trabalho que se realiza na organização ou departamento, riscos de degradação das condições de trabalho.

De facto, não é raro que seja na falta de competência e capacidade das «lideranças», na acepção atrás desenvolvida (desde logo no inexistente ou insuficiente conhecimento da área de actividade em causa e daí do trabalho real que ali se realiza), que, por acção ou omissão (o que em regra se traduz em autoritarismo ou laxismo), emergem e se agravam riscos para a segurança e saúde (física ou mental) e mesmo para a vida dos trabalhadores. 

Desde logo, riscos de anuviamento do ambiente sócio-laboral que muito é causa e efeito da degradação das relações sociais de e no trabalho e de que não é raro resultar, em associação com óbvio prejuízo na produtividade, qualidade e oportunidade do serviço público a prestar, a emergência e agravamento de situações de assédio moral (e mesmo de violência), de qualquer modo de sofrimento mental ou físico no e do trabalho.

Enfim, riscos de, em geral, serem postos em causa os direitos dos trabalhadores. Ora, concluindo de forma menos directa e mais alegórica, com ancoragem na citação do imperador romano de há 22 séculos, Júlio César, «todo o soldado tem direito a um comando competente».

  • 1. «A poderose: análise clínica» – Público, 25/01/2020.

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