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Portugal enquanto país concedente de bandeira de conveniência 

O facto de um navio da marinha de comércio estar envolvido numa situação politicamente inaceitável remete-nos para a utilização da bandeira nacional em navios que não são minimamente portugueses e que prosseguem objetivos estratégicos que nada têm a ver com o nosso País.   

Créditos / DCO

Notícias muito recentes, vindas a público nos meios de comunicação social, deram-nos nota de que um navio de pavilhão português transportava explosivos militares para Israel.

Tal notícia, para a esmagadora maioria dos portugueses, evidenciava dois factos aparentemente indiscutíveis, a saber; o primeiro, que o navio assinalado é português, e, o segundo, que este transportava explosivos para Israel.

A realidade, porém, não é esta, pois que destes dois factos só um é que é verdadeiro, o do transporte de material de guerra para Israel.

O outro facto é completamente falso, pois o navio não é português, mas sim alemão, pertencendo a um armador alemão, e, enquanto ativo corpóreo, consta seguramente do balanço de uma empresa alemã.

O navio, cujo nome é Katrina [«Kathrin»], navega, contudo, sob pavilhão português, pois está inscrito no Registo Internacional de Navios da Madeira (RINM-MAR). 

Este facto político-económico, que deveria estar, no plano nacional, a um nível idêntico ao dos explosivos transportados para Israel, é como se não existisse para os meios de comunicação social.

Porém, por detrás deste facto, escondem-se dois graves problemas, e que são, por um lado, o de Portugal, desde há já muitas décadas, não ter, de maneira alguma, marinha de comércio, e, por outro lado, «possuir» uma pseudo-frota nacional, uma espantosa frota de navios de comércio, pela sua dimensão e arqueação, neste momento a aproximar-se dos mil navios, mas que, de facto, é uma absolutamente falsa frota nacional.

«O outro facto é completamente falso, pois o navio não é português, mas sim alemão, pertencendo a um armador alemão, e, enquanto ativo corpóreo, consta seguramente do balanço de uma empresa alemã.»

A primeira debilidade corresponde a mais um défice estrutural da economia nacional, o défice marítimo-comercial, défice a acrescer aos muito conhecidos défices produtivo, alimentar, energético, demográfico e tecnológico, mas que é, simultaneamente, um défice com um caráter único, pois que é o único défice em que a componente exportação é quase nula, exatamente porque não existe frota que suporte esta vertente.

E é bom recordar que mais de 65% do nosso comércio externo de mercadorias é por via marítima, com encargos anuais com fretes de navios estrangeiros, alguns dos quais até podem ter pavilhão nacional, que terão chegado, em 2023, aos 4% do total das importações de bens e serviços, cerca de 5 mil milhões de euros.

Tal défice é profundamente preocupante, constitui uma debilidade estratégica crítica, com reflexos sobre o exercício da soberania.

Ao invés, vem crescendo, a ritmos assustadores, uma falsa frota de marinha de comércio, dita nacional, correspondente aos navios que ostentam a bandeira nacional enquanto bandeira de conveniência, e estão registados, como já antes observámos, no RINM-MAR.

Trata-se, de facto, embora com marcas opostas, de duas debilidades estratégicas, uma claramente do domínio económico nas suas relações com o exercício da soberania, e a outra, claramente, do domínio político.

Sobre a dimensão da frota usando a bandeira nacional enquanto bandeira de conveniência

Os últimos dados de 2024, publicados pelo Instituto dos Transportes e da Mobilidade, dão conta do registo de 944 navios, a que corresponde uma arqueação bruta de 24 150 779.

Destes 944 navios, 331 são porta-contentores, 240 navios de carga geral, 119 são graneleiros, 92 são navios dedicados ao transporte de produtos químicos, 71 correspondem a outras funções, 29 são petroleiros, 25 são navios de passageiros (navios de cruzeiros), 22 são navios Roll-on-Roll-off e 15 são metaneiros.

«Por detrás deste facto, escondem-se dois graves problemas, e que são, por um lado, o de Portugal, desde há já muitas décadas, não ter, de maneira alguma, marinha de comércio, e, por outro lado, "possuir" uma pseudo-frota nacional, uma espantosa frota de navios de comércio, pela sua dimensão e arqueação, neste momento a aproximar-se dos mil navios, mas que, de facto, é uma absolutamente falsa frota nacional.»

Trata-se, portanto, de uma frota cobrindo quase todo o espetro de valências necessárias ao transporte marítimo de mercadorias existentes, nas condições da atualidade.

Esta enorme frota tem nas suas tripulações 16 354 trabalhadores, dos quais 6 137 oficiais e 10 217 na marinhagem.

Em termos médios, as tripulações destes 944 navios, empregam em 2024, o «alucinante» valor de 2% de portugueses, exatamente os nacionais do país de bandeira, 32% de outros europeus (uns e outros são na grande generalidade oficiais) e 66% de trabalhadores com outras nacionalidades.

Finalmente, relativamente ao impetuoso crescimento dos registos, particularmente a partir do início deste século, o número de navios registados foi multiplicado, entre 2000 e 2024, por cerca de 40, enquanto que, para o período 2013-2024, a arqueação bruta dos navios registados foi multiplicada por 16.

Acerca das circunstâncias da utilização dos navios registados no RINM-MAR

O facto de um navio da marinha de comércio estar envolvido numa situação politicamente inaceitável remete-nos, porém, para um enquadramento que não tem como centro de gravidade o acontecimento considerado em si mesmo, mas para a utilização da bandeira nacional em navios que não são minimamente portugueses, e que prosseguem objetivos estratégicos, táticos e operacionais que nada têm a ver com o nosso País.   

Focando-nos, por razões metodológicas, no caso do transporte de explosivos de uso militar para Israel, facto que mancha o nome do País, deveremos ter a consciência muito clara, de que situações deste tipo podem repetir-se noutros momentos e com outros navios registados em Portugal, dada a muito elevada dimensão do universo de navios estrangeiros de marinha de comércio registados no País.

Sobre as origens e evolução do registo de conveniência em Portugal

Para situar histórica e politicamente esta problemática, há que recordar, que são exatamente os mesmo atores políticos, ou seja, os governos do PSD, PS e CDS, que destruíram no passado, quase por completo, a marinha de comércio nacional, seja por via da pura extinção administrativa das empresas públicas que então detinham as frotas, seja no quadro de processos de privatizações-desnacionalizações de empresas públicas de transporte marítimo, que, em 1989, criaram na Zona Franca da Madeira um regime de bandeira de conveniência, através do decreto-lei n.º 96/89 de 28 de Março, com vista ao registo de navios de marinha de comércio estrangeiros. Era então governo o PSD/Cavaco Silva.

A este decreto-lei fundacional, já se seguiram, até à atualidade, dez alterações legislativas, todas tendo subjacente um escopo estratégico, não para Portugal, mas para os grandes armadores, a saber, o aumento da atratividade do registo, ou seja, levar as facilidades concedidas por vezes a níveis deprimentes e atentatórios da dignidade nacional.

Julgamos também pertinente recordar que, no argumentário constante do preâmbulo do decreto-lei n.º 96/89 para justificar a bondade da iniciativa legislativa, destacava-se um argumento, completamente falso, porque não aderente à realidade nacional, que era o de que a criação de registos de conveniência em vários países europeus, tais como o Reino Unido, a França, a Holanda, a Dinamarca e a Noruega, decorria do facto de os seus navios nacionais estarem a migrar dos registos convencionais nacionais, para os registos de conveniência de países em desenvolvimento.

E é também de recordar que, os mesmos governos da política de direita, colocaram como objetivo estratégico transformar Portugal no mais importante registo de conveniência da Europa. 

Recorde-se, a propósito, que, de acordo com o ponto 1 do artigo 20.º do decreto-lei constitutivo do RINM-MAR, o comandante, e pelo menos 50% das tripulações devessem ser constituídas por portugueses; pois então, após sucessivas «modernizações» da legislação aplicável, atualmente, tal valor, pode ser, simplesmente zero. Maior «patriotismo» é difícil.

«E é também de recordar que, os mesmos governos da política de direita, colocaram como objetivo estratégico transformar Portugal no mais importante registo de conveniência da Europa.»

Como é bem conhecido, e de forma muito simplificada, as condições de atratividade decorrem sobretudo de obscenos benefícios fiscais e de regimes de exceção relativamente à Segurança Social, e em que Portugal está a competir com países como a Libéria, o Panamá, ou na Europa, Malta e Chipre.

E é assim que se melhora o perfil de especialização da economia nacional.

É de recordar ainda que os objetivos económicos associados a esses navios, isto é, o que transportam, para onde transportam, para quem transportam, em que condições de segurança transportam, com que tripulações, designadamente em termos de nacionalidades, nada disto tem a ver com Portugal, mas tão somente com os interesses estratégicos, táticos e operacionais, em cada período temporal, do respetivo armador.

Porém, ao conceder o uso do pavilhão nacional a um navio, o país concedente do registo assume responsabilidades pelas atividades deste, no quadro do direito marítimo internacional aplicável, relativamente a aspetos como a segurança, a poluição, a predação ambiental, ou, como no caso em apreço, ao tipo de mercadorias transportadas, sobretudo no plano reputacional.

Sobre as responsabilidades do Estado português, enquanto Estado de bandeira 

Julgamos ser pertinente colocarem-se desde já, sobre a epígrafe, algumas perguntas: Qual a responsabilidade do Estado português, enquanto Estado de bandeira de conveniência, designadamente em casos como o do Katrina? E, por outro lado, qual a capacidade legal de Portugal poder alterar as missões e os objetivos do navio, definidos previamente pelo armador?

Desde logo, quer o decreto-lei constitutivo do RINM-MAR, quer as suas sucessivas revisões, são completamente omissos sobre esta questão.

Por outro lado, a Constituição da República Portuguesa, designadamente nos seus artigos 3.º (Soberania e legalidade) e 5.º (Território), não faz qualquer referência aos navios de comércio ou a quaisquer outros, enquanto território nacional, portanto, enquanto espaço onde se exerce a soberania, como consta dos textos constitucionais de alguns outros países.

Também no título X – Defesa Nacional nada é referido sobre o tema relativamente a navios de guerra, embora a legislação internacional sobre direito do mar o faça.

Por outro lado, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, a que Portugal aderiu em Outubro de 1997, no ponto 1 do artigo 92.º (Estatuto dos navios) refere que «Os navios devem navegar sob a bandeira de um só Estado e, salvo nos casos excecionais previstos expressamente em tratados internacionais ou na presente Convenção, devem submeter-se, no alto mar, à jurisdição exclusiva desse Estado. Durante uma viagem ou em porto de escala, um navio não pode mudar de bandeira».

Ainda na mesma Convenção, no seu artigo 94.º (Deveres do Estado de bandeira), absolutamente nada é dito sobre as mercadorias transportadas e as suas origens e destinos, e ainda menos sobre o seu caráter fortemente político, como é o caso em apreço.

De facto, e de forma muito discriminada, este artigo praticamente só determina deveres no domínio da segurança, da poluição marítima e da qualificação da tripulação.

Finalmente, a única proibição constante da Convenção do Direito do Mar é a constante do artigo 99.º (Proibição do transporte de escravos).   

Isto é, perante este cenário, parece, e reafirmo, parece, que o Estado português não tem condições legais para exercer quaisquer punições sobre o armador, restando-lhe, porventura, somente anular o registo de bandeira se assim o entender.

Sobre as alternativas à situação atual que o interesse nacional exige

Como já antes observámos, o défice dos serviços de transporte marítimo com o exterior, constitui uma preocupante debilidade estratégica da economia nacional, sendo o único défice estrutural em que a taxa de cobertura das importações pelas exportações é quase zero, dado não haver praticamente exportações.

Porém, muito mais do que o valor deste défice, o mais importante, são as consequências para o exercício da soberania face à total dependência do exterior, isto é, de navios que permitam assegurar o nosso comércio externo de bens, particularmente, no que respeita a mercadorias críticas. 

Assim sendo, a defesa intransigente do interesse nacional, exige que esta situação comece a ser, tão breve quanto possível, completamente alterada.

Deveremos, portanto, considerar o desenvolvimento, cuidadosamente planeado, tendo em atenção critérios críticos, designadamente os financeiros, de um Plano de Reanimação e Desenvolvimento da Marinha de Comércio Nacional.

«Perante este cenário, parece, e reafirmo, parece, que o Estado português não tem condições legais para exercer quaisquer punições sobre o armador, restando-lhe, porventura, somente anular o registo de bandeira se assim o entender.»

Este objetivo, deverá constituir um verdadeiro desiderato nacional, isto é, a necessidade de reconstruir uma marinha de comércio autenticamente nacional, preferencial ou dominantemente em estaleiros nacionais, desde logo, construindo as bases de frotas especializadas críticas na atualidade, nomeadamente de porta-contentores, de navios de carga geral e de petroleiros e metaneiros, sem que estes destaques excluam minimamente outras valências.    

Num outro domínio, e face aos argumentos aduzidos ao longo do presente artigo, entendemos que o RINM-MAR deverá ser extinto tão rapidamente quanto possível, iniciando-se, muito brevemente, o estudo e planeamento da criação das condições jurídicas, organizacionais e porventura financeiras, que permitam suportar a concretização deste objetivo estratégico.

Finalmente, dada a indiscutível necessidade da existência de um Registo Nacional de Navios de Comércio, deverá, obviamente, manter-se o Registo Convencional, expurgado que seja das perversões que contém, designadamente no domínio fiscal.

E esta revisão é indiscutivelmente necessária, mesmo no quadro de uma fraquíssima taxa de inscrição neste registo. 

De facto, desde há vários anos que o número de navios nacionais, de facto nacionais, inscritos no Registo Convencional, tem sistematicamente valores inferiores a cinco unidades, situando-se, nos últimos anos, em torno das três unidades.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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