Entrega do Prémio Camões

Raduan Nassar: «Vivemos tempos sombrios, muito sombrios»

A cerimónia de entrega do Prémio Camões ao brasileiro Raduan Nassar, na sexta-feira, ficou marcada pelas duras críticas que o escritor dirigiu, na sua intervenção, ao Governo golpista e ao Supremo Tribunal Federal (STF).

O escritor brasileiro Raduan Nassar recebeu o Prémio Camões
Créditos / cultura.estadao.com.br

Raduan Nassar, considerado um dos maiores escritores vivos da língua portuguesa e a quem o júri do Prémio Camões 2016 atribuiu a distinção por unanimidade, em Maio do ano passado, recebeu ontem o prémio, em São Paulo. No decorrer da cerimónia, Nassar fez uma leitura muito crítica do actual cenário brasileiro: «Vivemos tempos sombrios, muito sombrios», disse.

Referiu-se, em seguida, a uma série de episódios que marcam a governação de Michel Temer (PMDB): «Invasão na sede do Partido dos Trabalhadores em São Paulo; invasão na Escola Nacional Florestan Fernandes; invasão nas escolas de ensino médio em muitos estados; a prisão de Guilherme Boulos, membro da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto; violência contra a oposição democrática ao se manifestar na rua. Episódios perpetrados por Alexandre de Moraes».

Não se ficaram por aqui as referências a Moraes, ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo, durante governo de Geraldo Alckmin (PSDB), e ministro da Justiça do Governo Temer, indicado por este para ocupar uma cadeira no STF. O escritor caracterizou-o como uma «figura exótica» e acusou-o de, «com curriculum mais amplo de truculência», ter propiciado também, «por omissão, as tragédias nos presídios de Manaus e Roraima».

O discurso foi contundente. «Os fatos configuram por extensão todo um governo repressor: contra o trabalhador, contra aposentadorias criteriosas, contra universidades federais de ensino gratuito, contra a diplomacia ativa e altiva de Celso Amorim [ex-ministro dos Negócios Estrangeiros]. Governo atrelado por sinal ao neoliberalismo com sua escandalosa concentração da riqueza, o que vem desgraçando os pobres do mundo inteiro», afirmou.

Conhecido pela sua oposição à destituição de Dilma Rousseff, Raduan Nassar dirigiu-se em particular ao STF, criticando-o pelo papel assumido. «É esse o Supremo que temos, ressalvadas poucas exceções. Coerente com seu passado à época do regime militar, o mesmo Supremo propiciou a reversão da nossa democracia: não impediu que Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados e réu na Corte, instaurasse o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Íntegra, eleita pelo voto popular, Dilma foi afastada definitivamente no Senado. O golpe estava consumado! Não há como ficar calado», disse. (O discurso pode ser lido na íntegra em Carta Capital).

Ministro irritado

Adivinhando-se, porventura, que o discurso não seria «mole», o protocolo seguiu um rumo diverso, que possibilitou ao ministro da Cultura, Roberto Freire, discursar depois do homenageado – quando o costume é ser este a ter a palavra final. Visivelmente irritado, Freire disse que o governo de que faz parte é democrático. «Não existe nenhuma confusão em relação ao momento democrático que vive o Brasil», disse, seguido de risos e vaias da assistência. «É um humorista!», disse um dos presentes, segundo revela o Brasil de Fato.

Para o Freire, o escritor devia ter recusado o prémio, que foi instituído pelos governos de Portugal e do Brasil em 1988. E, por entre os protestos dos presentes, sublinhou que não se tratou «apenas de um reconhecimento», mas de um «prémio concreto», «dado pelo governo democrático brasileiro».

O Brasil de Fato indica que algumas pessoas o interromperam, afirmando que aquele era o dia de Raduan e «não de publicidade do Governo Temer». A Folha de São Paulo refere ainda que, à saída, Freire chamou idiota a um professor da Universidade de São Paulo que o acusara de não estar «à altura do evento».

Escritor distinguido

Com três livros publicados – os romances Lavoura Arcaica (1975) e Um Copo de Cólera (1978) e o livro de contos Menina a Caminho (1994) –, Raduan Nassar, de 81 anos, é há muito considerado pela crítica como um dos grandes nomes da literatura brasileira, sendo comparado a escritores da grandeza de Guimarães Rosa, a título de exemplo.

No final de Maio de 2016, o Prémio Camões foi atribuído, por unanimidade, a este filho de imigrantes libaneses, nascido no estado de São Paulo. Nassar tornou-se, assim, o 12.º brasileiro a receber aquele que é considerado o mais importante prémio literário destinado a autores de língua portuguesa. Na altura, o júri destacou «a extraordinária qualidade da sua linguagem» e a «força poética da sua prosa».

Os seus romances alcançaram sucesso a nível internacional logo na primeira metade dos anos 80, com as traduções para francês, castelhano e alemão, mas, tal como sublinha o Público numa peça publicada a 30 de Maio do ano passado, a sua obra tornou-se bastante mais popular com a adaptação cinematográfica de Um Copo de Cólera, em 1999, e de Lavoura Arcaica, em 2001.

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