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Assédio sexual: a culpa é de quem?

É urgente reflectir sobre os alicerces antigos do assédio sexual e perceber o seu impacto no comportamento da vítima – quando consente, quando denuncia, quando releva, quando nomeia. Quando se cala.

Um grupo de trabalhadoras denunciou ao <em>New York Times</em>, em 2017, a existência de assédios e abusos sexuais persistentes nas fábricas de Chicago da Ford Motor Company, e processaram a empresa, por conhecimento e complacência com os mesmos
CréditosAlyssa Schukar / New York Times

Quatro anos depois da explosão dos movimentos #MeToo e #Times Up nos EUA, a questão do assédio sexual chegou ao espaço mediático português, com as recentes denúncias feitas por diversas figuras na comunicação social. Os julgamentos públicos não se fizeram esperar, muitos deles penalizando as denunciantes e questionando as suas intenções: porque só agora falaram, porque se vestiam assim, porque diziam assado, porque permitiam aqueles comportamentos, porque aproveitaram a atenção em benefício próprio, porque agora é tarde, porque não nomearam o agressor ou porque o fizeram. Não deixa de ser espantoso que esta discussão continue essencialmente centrada no comportamento das vítimas. Ou talvez não. O que mudou, de facto, nos últimos anos, no que ao papel das mulheres diz respeito?

«a luta pelos direitos das mulheres à igualdade no trabalho e na vida é um processo longe de terminado. E sendo certo que não são as únicas vítimas de assédio sexual, o facto é que representam a sua esmagadora maioria»

Muito pouco, ou mesmo nada. Sendo verdade que as actuais normas e práticas sociais condenam manifestações abertas de discriminação, mantém-se as veladas – subtis, discretas, socialmente aceites – que continuam a maltratar, objectificar e diminuir as mulheres, tratando-as com desdém em todas as áreas da vida. Na esfera doméstica, permanecem associadas ao papel de cuidadoras «naturais» e sujeitas à realização normalizada de longas horas de trabalho não pago. Em função desta distribuição desigual do trabalho doméstico, apenas 47% das mulheres em idade produtiva participavam do mercado de trabalho em 2020, por oposição a 74% dos homens – uma disparidade que se mantém estável desde 19951. Nos locais de trabalho, continuam sub-representadas em posições de decisão e recebem salários mais baixos (de acordo com o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, a diferença remuneratória entre homens e mulheres em 2020 correspondia a 52 dias de trabalho pago). No plano social, são alvo de sexismo, ora hostil (alvo de preconceito explícito que as coloca num plano de valor inferior), ora caridoso (alvo de discriminação positiva que as observa com condescendência em função da sua condição supostamente sensível, frágil, desamparada). Continuamos a viver numa sociedade que alimenta uma longa tradição de subordinação feminina no plano macro social, nascida com a própria definição de família, promovendo uma lógica de divisão de papéis de género e de dominação masculina que alimenta as mais diversas formas de violência sobre as mulheres – o assédio sexual é apenas uma delas. Em suma, a luta pelos direitos das mulheres à igualdade no trabalho e na vida é um processo longe de terminado. E sendo certo que não são as únicas vítimas de assédio sexual, o facto é que representam a sua esmagadora maioria.

«Os estudos realizados em Portugal confirmam que, também entre nós, o assédio sexual é mais expressivamente cometido por homens e mais frequentemente praticado por superiores hierárquicos e chefias directas sobre pessoas numa posição hierárquica inferior»

A permissividade social e das políticas institucionais e a ausência de mecanismos adequados de denúncia converte os contextos laborais num dos principais cenários de normalização estrutural de práticas de discriminação de género e manutenção do lugar de vulnerabilidade ocupado pelas mulheres. Os estudos realizados sobre o tema, iniciados na década de 70, foram permitindo uma aproximação consistente a uma definição deste fenómeno, que decorre, com elevada frequência, no âmbito de uma relação de poder e integra acções indesejadas com conotação sexual (verbal ou não verbal), com o objectivo de perturbar, provocar, humilhar, rebaixar, intimidar, coagir. Comportamento de largo espectro, nele cabem actos diversos e de gravidade variável (desde comentários ou mensagens sexuais, comentários sobre o corpo, insinuações ou piadas de carácter sexual, convites insistentes, tentativas de agarrar, beijar ou tocar ou exigências explícitas de contacto sexual sob forma de suborno ou ameaça) e cujos elementos dependem, em larga medida, da percepção da vítima. Os estudos realizados em Portugal confirmam que, também entre nós, o assédio sexual é mais expressivamente cometido por homens e mais frequentemente praticado por superiores hierárquicos e chefias directas sobre pessoas numa posição hierárquica inferior. Indicam ainda que as razões para a falta de denúncia pela vítima se relacionam com: não ter a quem recorrer; medo de ser desacreditada; ter sido aconselhada a ficar calada; ter receio de represálias profissionais ou de ser despedida. Por isto, é frequente que a vítima desvalorize. Encare como uma brincadeira. Faça de conta que não reparou – Quantas de nós já não fizeram o mesmo? Muitas: Um estudo de 2019 da FFMS indica que 79% das mulheres portuguesas diz já ter passado por situações de assédio sexual no trabalho.

«O assédio sexual é uma prática inequivocamente ligada a práticas de desigualdade, naturalmente enquadradas na problemática maior das desigualdades sociais, questões prementes na sociedade portuguesa, onde os locais e contextos de trabalho são muitas vezes palco de manifestação de poder abusivo e de vulnerabilidade»

Perante este quadro, não deveria ser tão difícil assim de entender os motivos sociais, culturais e históricos pelos quais as situações de assédio sexual são sub-reportadas em todo o mundo: o preço pessoal, social e profissional a pagar por uma denúncia pode ser demasiado alto. A este custo acresce a confusão nas definições de assédio sexual e o impacto destas situações: o espanto e a dúvida (Sofri assédio sexual? Estarei a exagerar?); a culpa (Fiz alguma coisa para provocar isto?); a humilhação e a vergonha (O que irão pensar de mim? Ninguém vai acreditar em mim.); o medo de retaliação ou represálias (Vou ser despedida. Vou ser prejudicada. É a palavra dele contra a minha.). Por fim, pensemos ainda na gestão dos problemas de saúde psicológica que podem estar associados: stress, ansiedade, depressão, perturbações de sono ou até stress pós-traumático, perda de motivação para o trabalho ou mesmo abandono do emprego. E o sofrimento psicológico implicado na reexperiência do trauma, quando se conta o que se passou – mesmo que muito tempo depois.

Sejamos claros: O assédio sexual é muito frequente e tem de ser combatido. Para isso, é essencial colocar a tónica do problema no agressor, e não no comportamento ou características da vítima. O assédio sexual é uma prática inequivocamente ligada a práticas de desigualdade, naturalmente enquadradas na problemática maior das desigualdades sociais, questões prementes na sociedade portuguesa, onde os locais e contextos de trabalho são muitas vezes palco de manifestação de poder abusivo e de vulnerabilidade. Os locais de trabalho têm o dever de combater a desigualdade de género e o assédio sexual, de assegurar ambientes seguros e, sobretudo, de garantir mecanismos de recepção e investigação de denúncias que salvaguardem a confidencialidade e protejam as vítimas, prevenindo retaliações, proporcionando apoio psicossocial e jurídico e sancionando disciplinarmente os actos. A todos nós, cabe a responsabilização dos responsáveis: não apenas dos agressores, mas de toda uma sociedade que insiste em tratar as mulheres de forma desigual. É urgente reflectir sobre os alicerces antigos do assédio sexual (e da discriminação de género, em geral) e perceber o seu impacto no comportamento da vítima – quando consente, quando denuncia, quando releva, quando nomeia. Quando se cala.

Informações úteis:

ACT – Autoridade para as Condições do Trabalho, Queixas e Denúncias

CITE – Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego | 800 204 684 ou Queixas por Assédio

Polícia de Segurança Pública (PSP)Guarda Nacional Republicana (GNR) ou Polícia Judiciária (PJ)

CIG – Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género | 800 202 148

CGTP-IN - Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses — Intersindical Nacional | 213 236 500

  • 1. Dados da Organização Mundial de Saúde, The World’s Women 2020: Trends and Statistics.

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