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Bicicleta, uma perspectiva de classe

O projecto urbanístico da cidade capitalista implica o afastamento do trabalhador dos seus locais de trabalho num processo de pulverização a que os transportes públicos dificilmente conseguem dar resposta adequada.

Créditos / Mensagem de Lisboa

No seu livro Até amanhã, camaradas, Manuel Tiago (pseudónimo literário de Álvaro Cunhal) descreveu de forma detalhada a importância da bicicleta na organização clandestina do Partido Comunista Português, em tempos de ditadura. Os percursos, os caminhos, tantas vezes à chuva e durante a noite, ganham tamanha centralidade na narrativa, que, nas ilustrações que Rogério Ribeiro faz para o livro, a figura do camarada a pedalar é recorrente.

Mais do que um sujeito poético, Cunhal atribui à bicicleta um carácter instrumental para a militância comunista. Meio de locomoção mais rápido que a caminhada, ao alcance financeiro de qualquer organização e militante e que permitia uma certa mobilidade errante que não levantava suspeitas. Era de bicicleta que se levava o Avante!. Era de bicicleta que os camaradas chegavam onde não havia Partido.

Muito do que motivava a profícua utilização da bicicleta por inúmeras organizações comunistas são argumentos ideológicos para que, nos dias de hoje, os comunistas assumam a vanguarda da batalha em prol do aumento da utilização das bicicletas em espaços urbanos e rurais.

Jamais as forças progressistas e revolucionárias deverão defender, como se de um direito se tratasse, as vantagens do trabalhador efectuar os seus movimentos pendulares de automóvel – designadamente o casa-trabalho – e, muito menos, colocar a sua utilização diária como uma reivindicação. O projecto urbanístico da cidade capitalista implica o afastamento do trabalhador dos seus locais de trabalho num processo de pulverização a que os transportes públicos dificilmente conseguem dar uma resposta adequada.

Sendo certo que importa continuar a garantir o direito de todos, caso assim o desejem, a ter acesso a um automóvel, a sua utilização diária vai-se constituindo, cada vez mais, como uma obrigação que até pode ser decisiva na hora da contratação. Não basta ter carta de condução, a viatura própria também pode ser  factor de escolha. O automóvel vai deixando de ser o instrumento de emancipação que já foi para ser parte de um sistema de controlo.

O tempo de deslocação do trabalhador para o seu local de trabalho é contabilizado nas suas horas de lazer e os custos com o automóvel, estacionamento e consumos são uma taxa que o capital aplica, a seu bel-prazer, sobre o salário. Desde as oscilações do preço de compra do automóvel, gasolina, portagens, estacionamento, arranjos, manutenção... tudo é matéria para fazer crescer o custo de vida do trabalhador e produzir rendas fixas a partir do seu salário.

«O tempo de deslocação do trabalhador para o seu local de trabalho é contabilizado nas suas horas de lazer e os custos com o automóvel, estacionamento e consumos são uma taxa que o capital aplica, a seu bel-prazer, sobre o salário.»

Note-se que não pretendo reduzir a importância do desenvolvimento industrial e tecnológico que o automóvel personifica, e tampouco contrariar a sua massificação, mas, numa primeira fase, constatar a forma como se tem vindo a constituir como um mecanismo de controlo, de condicionamento do rendimento e da vida diária dos trabalhadores, para concluir que equipara a sua utilização diária nas deslocações casa-trabalho a um direito do trabalhador, é a defesa desse mecanismo de controlo.

A resposta a esta problemática deve insistir no reforço dos transportes públicos e no combate às formas de territorialização das desigualdades. Neste ponto, interrogar-se-á o leitor, onde ficam as bicicletas?

Comecemos por assumir que a resposta ciclável não é uma possibilidade universal para quem usa o automóvel. Haverá um grupo de pessoas cujos corpos condicionam ou impedem o uso diário da bicicleta, outro cujos trajectos são incompatíveis e ainda outro que, pelas mais diversas razões, não deseja fazê-lo. Nenhum destes grupos de pessoas devem perder direitos de circulação. Mas a soma destes três grupos está, a meu ver, longe de representar uma maioria. Mais, uma menor dependência do automóvel da maioria levará a que quem tem necessidade de o continuar a utilizar, circule melhor e com mais fluidez.

Do ponto de vista urbanístico, não se trata de acabar com eixos viários mas de alterar as prioridades e privilégios de modo a garantir as condições de maior segurança a quem circula de bicicleta, no que se está, objectivamente, a melhorar as condições de segurança dos peões e, sobretudo, das crianças. Ou seja, importa retirar o medo a quem circula de bicicleta, transformando o seu uso urbano em algo confortável e seguro para a maioria.

Do ponto de vista de classe, o crescimento exponencial da utilização da bicicleta em meio urbano tem-se feito, numa primeira fase, a partir das classes médias urbanas e, mais recentemente, a partir dos trabalhadores de distribuição de mercadorias.

As classes médias urbanas são um grupo de pessoas socialmente diverso, onde se podem inscrever camadas de trabalhadores com vínculos precários mas também segmentos da burguesia. No entanto, esta disputa pelo espaço público da cidade ainda encontra fortes obstáculos nas camadas mais desfavorecidas da população.

A leitura de que essa escolha resulta de uma condição de privilégio, seja de proximidade entre casa-trabalho ou de um corpo treinado, e que ela obstaculiza a circulação do outro trabalhador, é a forma como as forças reaccionárias têm procurado defender o sistema de dependência do automóvel e dos consumos que lhes estão associados. Esta narrativa faz-se com a produção de factos falsos (prejuízos do comércio local ou aumento de poluição) e pela construção do ódio entre quem circula de bicicleta e de automóvel.

Numa perspectiva marxista, trata-se de uma forma clássica de garantir que os explorados lutam entre si e não contra o que os explora. É nesta medida que me parece fundamental desarticular este falso antagonismo que apenas pretende aprofundar a dependência.

«Ou seja, importa retirar o medo a quem circula de bicicleta, transformando o seu uso urbano em algo confortável e seguro para a maioria.»

Entendamo-nos quanto a dois princípios da acessibilidade. Uma bicicleta não é um bem de consumo inatingível para quem circula de automóvel e uma bicicleta eléctrica permite a circulação em qualquer território urbano sem necessidade de uma particular condição física. Ou seja, nem a condição financeira nem física são o problema para esta transição. Estamos mais longe do tempo em que a compra de uma bicicleta era apenas vista como a aquisição de um objecto de lazer e supérfluo, ou em que se declarava que, Lisboa ou Porto, pela sua condição topográfica, não eram «cidades para bicicletas».

O texto já vai longo e pouco escrevi sobre o potencial emancipador da utilização da bicicleta. Talvez não seja preciso. Nos tempos do fascismo, os comunistas mostraram esse potencial emancipador transformando a sua utilização num instrumento indissociável de uma acção política capaz de chegar ao todo do território nacional. Hoje, é importante que por cada nova ciclovia ou percurso seguro para bicicletas, há um novo grupo de pessoas que passa a diminuir os seus trajectos de circulação automóvel, que isso tem um reflexo nos seus rendimentos e na diminuição da sua dependência da indústria petrolífera e dos automóveis, e que contribui para respirarmos um ambiente um pouco melhor.

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