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Passe Ferroviário: já experimentou andar de promessa?

Por agora, centremos-nos nisto: o Governo está obrigado a alargar o passe ferroviário nacional e não o fez. Que o faça! E como não se pode andar de promessa, o Governo que se centre no essencial e aumente a oferta ferroviária.

Na última greve, só circularam os comboios previstos nos serviços mínimos
CréditosJosé Coelho / Agência Lusa

O passe ferroviário nacional existe, e tem um custo de 49 euros. O Orçamento do Estado para 2024 prevê o seu alargamento aos comboios inter-regionais em toda a rede ferroviária e a alguns comboios urbanos e intercidades «até ao final do primeiro semestre de 2024».

Tal como está implementado, este passe é uma medida de limitado alcance, servindo essencialmente alguma mobilidade turística e uns poucos movimentos pendulares. A prová-lo, está o número de utilizadores em 2023: 13 400 passes no total do ano (nos cinco meses em que a medida esteve em vigor). 

Aliás, foi esse carácter limitado que levou à apresentação de várias propostas no âmbito da discussão do Orçamento do Estado para 2024 que levassem ao alargamento do seu âmbito, nomeadamente incluindo a oferta inter-regional e inter-cidades onde não existe oferta regional, e as ligações urbanas imediatas (se alguém vem de Évora para Lisboa deve ter acesso ao comboio urbano para chegar ao seu destino e vice-versa). 

O primeiro semestre já passou e a medida não foi implementada. Apesar de ter sido anunciada ao público duas vezes – a primeira no momento da sua aprovação, a segunda quando o actual primeiro-ministro informou que o Governo iria implementar o dito  alargamento (cumprir a lei) só não sabia era quando – o alargamento do passe nacional ferroviário, que repetimos, está aprovado e orçamentado, continua sem ser concretizado. 

Utilizando uma técnica em que o PS também se revelou especialista, o Governo pretende agora substituir a concretização de um avanço – ainda que limitado, o alargamento do passe ferroviário nacional nos termos do OE2024 seria um avanço – pela discussão de um novo plano. E a verdade é que o consegue fazer – contando para tal, claro, com a prestimosa colaboração da comunicação social dominada.

Luís Montenegro prometeu agora, num comício do PSD a 14 de Agosto, para Setembro, «criar um passe ferroviário com o custo de 20 euros mensais (que permite o acesso a todos os comboios urbanos, regionais, inter-regionais e intercidades)» a acreditar no artigo do jornal Público de 15/8/2024. Claro que o mesmo jornal também nos informa que Luís Montenegro enquadrou a medida com a frase: «Em Setembro, vamos apresentar um plano de mobilidade verde».  

Estamos, pois, perante o terceiro anúncio público ao povo português do alargamento do passe ferroviário nacional. De um alargamento ainda maior e acrescido de uma promessa de significativa redução de preço. Continua é a não ser concretizado. E se, a acreditar na letra miúda das notícias, o que o Governo prometeu foi apresentar uma proposta, então não existe sequer a segurança se, em Setembro, o Governo vai implementar alguma coisa, de facto, ou vai continuar a gozar com os portugueses, substituindo a concretização de uma medida já aprovada e já orçamentada, pela apresentação de uma proposta para ser novamente discutida. 

«Utilizando uma técnica em que o PS também se revelou especialista, o Governo pretende agora substituir a concretização de um avanço – ainda que limitado, o alargamento do passe ferroviário nacional nos termos do OE2024 seria um avanço – pela discussão de um novo plano. E a verdade é que o consegue fazer – contando para tal, claro, com a prestimosa colaboração da comunicação social dominada.»

Quanto à medida em si – e sem conhecer mais da proposta do Governo que as promessas atiradas pelo primeiro-ministro ao vento – é útil colocar alguns alertas. 

É preciso ter claro a quem e para que serve um passe. O actual passe ferroviário nacional – depois de corrigidas as suas lacunas - serve duas populações: por um lado, cria uma oferta a toda a rede nacional regional (e inter-regional na ausência desta) que deveria facilitar uma mobilidade nacional associada ao turismo e ao lazer; por outro, reduz o custo para um conjunto de ligações pendulares inter-regionais que antes utilizavam o passe da CP na falta da oferta de um passe intermodal e inter-regional que deveria existir e não existe. 

Nos termos formulados pelo jornal Público, o passe passa a ser outra coisa completamente diferente. Um exemplo: um passe de 20 euros para todos os comboios urbanos, por exemplo, pode ser atraente para as ligações pendulares dentro da própria Área Metropolitana de Lisboa, com muitos utentes a sentirem-se tentados a trocar a actual mobilidade metropolitana plena (o passe navegante garante acesso a todos os operadores e modos de transporte por 40 euros) por menor mobilidade, mas a menor custo. Ora esta deslocação de utentes do sistema metropolitano para um passe ferroviário tem impactos na mobilidade – por exemplo, estimula o uso do carro individual para chegar ao comboio em vez dos autocarros – e na própria sustentabilidade do modelo metropolitano hoje existente, podendo até colocá-lo em causa.  

Da mesma forma, há fortes movimentos pendulares inter-regionais que hoje assentam nas ligações da CP, que tenderiam a olhar para este passe como uma forma de significativa redução de custos. Ou seja, na forma como o jornal Público apresentou o passe (a proposta concreta do Governo não existe, e no site do PSD o que se encontra é só a vaga promessa de «um passe ferroviário, de 20 euros por mês, e que permitirá viajar na ferrovia de Braga a Faro») estamos perante um passe destinado essencialmente a reduzir os custos das viagens pendulares, o que sendo uma necessidade objectiva, tem outros impactos e, mais importante, deveria ser feito de outra forma, intermodal.

«Não existe sequer a segurança se, em Setembro, o Governo vai implementar alguma coisa, de facto, ou vai continuar a gozar com os portugueses, substituindo a concretização de uma medida já aprovada e já orçamentada, pela apresentação de uma proposta para ser novamente discutida.»

Um dos impactos desta medida seria nas contas da CP. Sabemos pelo Relatório e Contas da CP de 2023 que o Governo não lhe pagou, em 2023, qualquer contribuição pela existência do passe ferroviário nacional em 2023. Não se sabe se, com o actual Governo, já foram pagas as de 2023 ou se já começaram a pagar atempadamente a de 2024. Mas é quase seguro que não. Ora, o que é evidente é que o alargamento da medida, principalmente na forma apresentada pelo jornal Público, teria um impacto brutal nas contas da CP, e levanta desde logo a necessidade de uma clara definição da devida e atempada compensação financeira à CP. 

Mas, não vale a pena especular demasiado sobre o que será a proposta do Governo e os seus impactos. Eles que a apresentem primeiro. O exposto nos anteriores quatro parágrafos serve apenas de alerta que, seja qual for a proposta concreta, ela tem mais implicações que a fórmula que seja usada para a apresentar, e pode colocar em causa conquistas muito importantes para a população como as resultantes do alargamento do passe social intermodal em 2019.

Por agora, centremos-nos nisto: o Governo está obrigado a alargar o passe ferroviário nacional e não o fez. Que o faça! E como não se pode andar de promessa, o Governo que se centre no essencial e aumente a oferta ferroviária. Como? Acelerando a compra e entrada ao serviço dos novos comboios, contratando os trabalhadores em falta, dignificando as estações e a oferta, reforçando as ligações intermodais à ferrovia (nos passes, mas igualmente na oferta).  

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