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PPP, Brisa e companhia: o grande assalto continua!

O esforço é evidente: recuperar o conceito, um pouco «queimado» pela prática, para poder voltar a insistir na necessidade de novas parcerias público-privado.

Os utentes exigem a abolição das portagens, esclarecendo que faltam vias alternativas e seguras
Créditos / Razão Automóvel

Foi publicado mais um Relatório1 da UTAO sobre as parcerias público-privado (PPP), este agora referente ao ano de 2023. O esforço é evidente: recuperar o conceito, um pouco «queimado» pela prática, para poder voltar a insistir na necessidade de novas PPP. Mas a realidade é tão negra que o esforço acaba por se revelar inglório, basta darmos-nos ao trabalho de enquadrar a informação recebida. Vamos tentar exemplificar.

1. A PPP da ANA

A concessão dos aeroportos portugueses à ANA (privatizada à multinacional Vinci) é trazida para dentro do universo das PPP. E saudada porque passou a representar uma receita líquida para o Estado português. Lê-se no Relatório «O modelo de remuneração contratualizado para estas duas parcerias não estabelece quaisquer encargos financeiros para o sector público, numa base recorrente, podendo, contudo, ocorrer eventuais pedidos de REF2 por parte da concessionária. Salienta-se que nestes contratos o risco de procura é assumido pelo parceiro privado». Para depois saudar:«Em 2023 registaram-se os primeiros fluxos financeiros entre o sector público e o parceiro privado, no valor de 8,5 M€, a título de receitas partilhadas entre a concessionária privada e o concedente.» 

Parece maravilhoso, certo? O risco é todo do privado, e o Estado é só receber. Mas vamos por partes:

– O risco do privado: O único risco que uma empresa como a ANA pode enfrentar é algo similar à pandemia. Que aconteceu com a pandemia? A ANA teve dois anos difíceis: em 2020 registou um prejuízo de 72,1 milhões de euros e em 2021 o seu lucro foi de somente 27,5 milhões de euros. De imediato exigiu do Estado português 220 milhões para o reequilíbrio financeiro da concessão, de uma concessão que já lhe rendeu 1,86 mil milhões de lucros (entre 2013/2023) quando a comprou por 1,2 mil milhões e ainda faltam 40 anos de rendas. Era o Estado que deveria estar a pedir o reequilíbrio financeiro da concessão, como demonstrou o Tribunal de Contas. O «tribunal» arbitral ainda não decidiu, mas não haja ilusões, como sempre na justiça privada, vai determinar uma choruda indemnização ao privado. Ou seja, a Vinci corre o risco de... ganhar muito ou ganhar imenso. 

– E a ideia de o Estado estar agora a receber? Outra falsidade. Sem sequer ter em conta que quando o Estado for «condenado» a pagar o reequilíbrio financeiro da concessão vai ter de pagar, aproximadamente, o que iria «receber» nos próximos 15 anos, é preciso lembrar que a ANA, enquanto empresa pública, sempre deu lucro. E realizava todo o investimento nos aeroportos com receitas próprias. Nos 10 anos antes da privatização, só entre lucros e investimento realizado, a ANA gerou 1,5 mil milhões para o Estado português. Quando a realidade aeroportuária mundial era muito menor, com menos passageiros e portanto menos receita. Agora querem fazer uma festa porque a ANA entregou 8,5 milhões de um lucro de 400 milhões! Tenham vergonha!

2. As PPP rodoviárias

Aqui, a quantidade de dinheiro que tem escorrido para os bolsos de meia dúzia de capitalistas é tão grande que se torna impossível de esconder: em 2023 foram pagos às concessionárias privadas algo como 1347 milhões de euros (divididos entre 1212 milhões de pagamentos por disponibilidade, mais 86 milhões de pagamentos por serviço, mais 24 milhões de Compensações por Equilíbrio Financeiro, mais 25 milhões para «compensação» pelo aumento de 2023 ter sido «só» de 4,9%)3

Os encargos líquidos – o número que é destacado pela UTAO – foram «só» de 1078 milhões, pois o Estado também recebeu 364 milhões de portagens. 

Mas atenção, a este valor que o Estado pagou há que somar o dinheiro que os próprios utentes pagaram directamente às concessionárias. 

Nesse sentido é educativo olhar para o Relatório e Contas da Brisa 2023. Esta antiga empresa pública, privatizada entre 1997 e 2001, não construiu uma auto-estrada depois de privatizada (concluiu a A2 que estava lançada e financiada quando da privatização). Mas recebeu em 2023 um total de 749,4 milhões de euros em portagens (94% das suas receitas), amealhando um total de 276,6 milhões de euros em lucros (35% das receitas, um maná!) e distribuiu 239,4 milhões de euros em dividendos aos seus capitalistas (a Brisa é detida a 100% por um grupo de capitalistas holandeses, suíços e coreanos, que pagam a Pires de Lima para lhes dar um ar mais lusitano). 

«É educativo olhar para o Relatório e Contas da Brisa 2023. Esta antiga empresa pública, privatizada entre 1997 e 2001, não construiu uma auto-estrada depois de privatizada (concluiu a A2 que estava lançada e financiada quando da privatização).»

E se olharmos para os gastos da Brisa, vemos que o total das despesas de investimento foram apenas de 61,8 milhões de euros (dos quais zero em «novos lanços», 43,1 milhões em grandes reparações e 18,1 milhões em outros, ou seja, em equipamentos para substituir trabalhadores). A Brisa nada investe em obra nova e gasta menos que o Estado em grandes reparações (o Relatório da UTAO informa que o Estado gastou 50 milhões de euros em grandes reparações na rede concessionada). Mas distribui centenas de milhões aos seus capitalistas. Aliás, o anuário 2023 da APCAP4, para tentar disfarçar o carácter completamente parasitário da sua actividade, chama de «investimento» a soma do CAPEX e do OPEX, apresentando como investimento o conjunto das despesas operacionais – de tal forma que inventa para a Brisa um valor de investimento em 2023 (213,43 M€) que nem a própria Brisa se atribui como já vimos. 

Por fim, se somarmos os 749,4 milhões de euros pagos pelos portugueses nas portagens da Brisa, mais os 1347 milhões que o Estado português paga pelas PPP rodoviárias (dos quais 641,7 milhões vêm da CSR5, 364 milhões das portagens cuja receita vai para a IP e o resto do OE), temos um total de 2096 milhões de euros. Se olharmos para o citado anuário da APCAP, vemos que existem ainda mais 135,80 milhões de euros em portagens, o que faz com que seja de 2232 milhões de euros o total que os portugueses pagaram (só em 2023!) por uma rede de auto-estradas privatizada. (Ao que ainda se poderia somar os 98,57 milhões que pagaram na Lusoponte!). E atenção: isto é o que os portugueses pagaram directamente, pois as concessionárias ainda completam as suas receitas com outro tipo de receitas como sejam as geradas pelas estações de serviço.

3. Em busca de novas PPP – a construção da Alta Velocidade Lisboa-Porto

A projecção dos encargos líquidos futuros com as PPP aponta para uma redução muito significativa desses encargos nos próximos anos. Desde logo, porque os «critérios» têm trazido para dentro deste universo das PPP um conjunto de receitas geradas, no essencial, pela concessão de infraestruturas públicas onde agora só são contabilizadas as «receitas» da concessão (além do caso já citado da ANA, são somadas ao universo das PPP as «receitas» das concessões portuárias, a «receita» do Oceanário, etc.). Mas a outra razão é o facto de o grosso das actuais PPP – as concessões rodoviárias – estarem no final do seu tempo de vida, depois de se terem passado já 30, 35, 40 anos sobre a construção das infra-estruturas que as «justificaram». 

«E atenção: isto é o que os portugueses pagaram directamente, pois as concessionárias ainda completam as suas receitas com outro tipo de receitas como sejam as geradas pelas estações de serviço.»

É assim que a projecção dos encargos líquidos futuros com PPP para daqui a cinco anos é de 916,7 milhões e daqui a 10 anos, em 2033, é de 326,6 milhões. E claro, já há quem queira aproveitar a oportunidade para justificar novas PPP. Como é o caso da PPP do Hospital de Todos os Santos, das PPP na LAV Lisboa Porto e das várias sugestões que Pires de Lima já deu para conseguir prolongar as concessões da BRISA. De tal forma que a UTAO faz um inédito estudo da «comportabilidade financeira» das três PPP previstas para a LAV Lisboa-Porto. E explica-nos que é perfeitamente «comportável» pagar os 5910 milhões de euros que estas exigem até 2040 (limite do estudo da UTAO).

Mas a questão que ninguém nos consegue explicar é porque raios temos de procurar comportar esse custo? Recordo que só para as duas primeiras fases da LAV Lisboa Porto, o Estado já tem garantidos 3729 milhões públicos (3 mil milhões em empréstimos bonificados do BEI e 729 milhões de euros em apoios comunitários). Suficientes para fazer a obra. Porque precisa de um parceiro privado para receber esses apoios públicos e depois ainda ficar 31 anos a receber uma renda pública, que só para a primeira fase da obra, de acordo com Resolução do Conselho de Ministros n.º 12-A/2024, vai implicar ao Estado pagar 4,3 mil milhões de euros até 2055)?   

Concluindo

O Relatório da UTAO agora publicado fornece um conjunto de informação que, querendo, demonstra uma vez mais que o modelo das PPP não é mais que um esbulho de recursos públicos. Mas no mundo em que vivemos já não existe um problema de falta de informação. Existe um problema de falta de acesso à informação, pois o grande capital domina os meios pelos quais as massas recebem essa informação trabalhada, e por essa via, falsifica-a e coloca-a ao seu serviço. Houvesse uma imprensa massificada livre e a cleptocracia caia de imediato. Mas não há.

  • 1. Relatório da UTAO n.º13/2024  Apreciação das Parcerias Público-Privadas – Janeiro a Dezembro de 2023
  • 2. Reequilíbrio Financeiro
  • 3. Sim, como as concessionárias tinham «direito» a um aumento de 7,7% nas portagens, o Estado e os utentes vão pagar a diferença, até ao último tostão, e ainda uma folgazinha...
  • 4. Associação Portuguesa das Sociedades Concessionárias de Autoestradas ou Pontes com Portagens
  • 5. A CSR, antiga Contribuição de Segurança Rodoviária, actual Consignação de Serviço Rodoviário, é incorporada no preço do combustível.

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