A notícia é do início de Janeiro: o Tribunal de Contas chumbou a compra pelo IPO de um medicamento para combater o cancro.
Que fácil seria expressar aqui uma funda indignação contra o Tribunal de Contas. Como se atreve um conjunto de juízes a decidir se o IPO pode ou não comprar um medicamento? Só que a questão é outra: porque raios uma compra destas tem que merecer visto prévio do Tribunal de Contas? Que raio de lei é esta que impõe tal mecanismo?
Só pode ser uma lei estúpida, malvada, assassina. E é.
Porque o Tribunal de Contas [TdC] tem toda a razão quando recusa o visto: Há um «subfinanciamento crónico do Serviço Nacional de Saúde (SNS), que tem feito com que várias instituições incorram em despesas para as quais não têm cabimentação». E não é sem razão que, no acórdão, os juízes responsabilizam o Governo:
«Esta situação assume especial gravidade face ao serviço essencial que é prestado pelo IPO de Lisboa, tendo a tutela governativa total consciência de que tal serviço não pode ser interrompido sem que direitos fundamentais — constitucionalmente protegidos — dos cidadãos (desde logo o direito à saúde e mesmo o direito à vida) sejam seriamente postos em causa.»
E, durante meses (o pedido de visto prévio é de 7/6/2024 e decisão de 31/12/2024), o TdC e o IPO foram obrigados a discutir se se visava ou não a compra, argumentando um com o facto de a mesma não estar cabimentada, e o outro com o facto de ela ser imprescindível, estando ambos de acordo um com o outro, o TdC reconhecendo que se o IPO diz que o remédio faz falta é porque faz, e o IPO reconhecendo que a despesa não estava cabimentada como manda a lei e o TdC lhe exigia.
«Como se atreve um conjunto de juízes a decidir se o IPO pode ou não comprar um medicamento? Só que a questão é outra: porque raios uma compra destas tem que merecer visto prévio do Tribunal de Contas?»
E isto é tudo tão estúpido, tão desnecessário, tão inútil, tão reflexo dos sucessivos nós cegos com que se enredam as empresas públicas para que a sua gestão seja quase impossível.
Felizmente, o medicamento foi comprado, 850 mil euros para 20 pacientes cujos linfomas resistiam a outros remédios, e com isto, sim, deveriam preocupar-se tribunais e médicos, como é possível que para tentar salvar uma vida seja necessário pagar 42 mil euros a uma multinacional? E talvez por isso os ponham a discutir cabimentações, para não verem os problemas sistémicos que se agravam.
Mas não divaguemos e regressemos ao processo em causa. Foi comprado, mas sem visto prévio, ilegalmente, com os administradores do IPO a assumirem um risco, o da estupidez continuar e o processo levar à condenação dessa «ilegalidade». Ora, toda a gente sabe onde está a verdadeira responsabilidade pelo subfinanciamento do IPO – no Governo – e o próprio Tribunal de Contas o sabe, como se pode ver na conclusão com que encerra as 29 páginas de Acórdão: «Em face de tudo exposto, decide-se: recusar o visto ao contrato objecto de fiscalização prévia nos presentes autos; e deixar nota à entidade fiscalizada para envidar os maiores esforços junto do Departamento de Sustentabilidade Económico-financeira do Serviço Nacional de Saúde e do Ministério da Saúde, face a toda a matéria descrita neste acórdão, de forma a ser ultrapassada a falta de dotação orçamental e fundos que permitam assumir a despesa.»
Para uma última nota final. O subfinanciamento crónico das empresas públicas tem um objectivo: endividá-las, colocar as suas contas a dar prejuízo, complicar a sua capacidade de resposta operacional, para facilitar o processo de privatização. Quando essas empresas são hospitais transformados em empresas, o crime ganha outras dimensões, pois coloca mesmo em causa vidas humanas. Por incrível que pareça a gente sana, no dia em que o governo consegue criar as condições para vender uma empresa pública já não há necessidade de vistos prévios, e toda a venda ganha legitimidade formal antes mesmo de os seus contornos serem conhecidos pelo TdC, pela Assembleia da República ou pelo povo.
Só para reforçar a perversa estupidez disto tudo.
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui