Aqui há anos, António Mexia, então ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações do XVI Governo (PSD/CDS Santana Lopes/Paulo Portas), anunciava, em vésperas da campanha eleitoral de 2005, quatro linhas ferroviárias de AV/TGV para o país!
Neste ano da graça de 2019, com o mesmo desplante, António Mexia CEO da EDP, anunciou ao país, através da Comissão Parlamentar de Inquérito às Rendas Excessivas, entre muitas outras coisas1, que «a EDP foi e continua a ser o abono de família para o Estado».
Esqueceu-se de completar o raciocínio: e «a EDP foi e continua a ser» também um bom, um excelente, um verdadeiro abono de família euromilhões para António Mexia. E de mais alguns que partilham com António Mexia cargos na administração da EDP. Como toda a gente sabe. Mas devemos ser rigorosos na avaliação das atribuições e competências «públicas» da EDP.
Mexia tem razão. A EDP é um saneador do Estado, remodela governos, e não pede nada por essa operação de consultoria. Um Estado dentro do Estado, a EDP determina quem governa a energia: 2 secretários de Estado da Energia 2 – foram atropelados pelo carro pesado dos interesses accionistas da EDP. E de tal forma que a EDP, que não estava de acordo com a política energética, passa a estar de acordo, após a expulsão dos secretários de Estado.
A EDP é um colaborador do Estado no financiamento do ensino universitário – segundo Mexia, «€3M de investimento médio anual em mais de 50 instituições do ensino superior» – enquanto espalha a inteligência nacional pelos quatros cantos do universo. E fá-lo à custa dos lucros da EDP.
Gastou 1,2 milhões de euros com Manuel Pinho na Universidade de Columbia. Não sei quanto no ISEG, mas obteve um estudo que confirma todas as suas teses, mais um doutoramento Honoris Causa. E mais 1,5 milhões de euros no Campus da Nova SBE em Carcavelos (em investigação no DCIAP) que fez outro estudo a confirmar o do ISEG, que já tinha confirmado o da empresa de consultoria NERA.
Estudos que confirmam: a EDP não teve rendas mas prejuízos com os CMEC. São todos relatórios independentes, isto é, confirmam com independência as teses de quem os paga. Independentes porque, apesar destas coisas se discutirem há anos, foram segredos de Estado da EDP até chegar a Comissão de Inquérito. Uma dúvida: porque não recorreu o Estado português para os seus estudos (que a EDP diz que são falsos!) às Universidades pagas pelo Estado? Outra dúvida: porque não falou Mexia, na sua longa apresentação da «Recomendação da Autoridade da Concorrência ao Governo relativo ao regime de Auxílio de Estado denominado por Custos para a Manutenção do Equilíbrio Contratual (CMEC)», de 25 de Novembro de 2013, dos 3 Relatórios da Brattle, suscitados pela decisão governamental, face à Recomendação de proceder a uma Auditoria? E da posterior condenação da EDP?2
A EDP aguenta com a tarifa social e logo é uma espécie de Santa Casa da Electricidade. Mas protesta: responsabilidade social sim, mas não na Taxa Social. Mexia acha que não pode ser, o Estado que pague. É assim que contabiliza esses custos como inaceitáveis «cortes» das rendas excessivas que diz não existirem. Está na onda do Governo PSD/CDS, que fez do suporte da Taxa Social pelas electroprodutoras um corte das «rendas excessivas»!
A EDP é um tabelião do Estado a redigir leis e regulamentos para o Estado, e não cobra emolumentos. A EDP redige resoluções do Conselho de Ministros (RCM 52/2004), elabora Decretos-leis (240/2004), escreve Portarias (Portaria 85-A/2013). Mas não decide. Não: «o Governo decide», diz Manso Neto. Que acrescenta «redigir uma proposta de decreto-lei, a pedido do Governo, que o Governo depois, pode emendar, cortar e decidir, não vejo sinceramente, onde está o crime.» É uma «interação» «normal». «É uma grande empresa». (Claro.)
A EDP é um lar do Estado para ex-ministros desempregados, e não pede subsídios à segurança social. A fotografia dos 5 ex-Ministros do PS, PSD e CDS do Conselho Geral e de Supervisão (CGS) da EDP, mais o ex-ministro CEO, António Mexia, na revista da EDP de Fevereiro/Março de 20123, assim o prova. A que poderíamos acrescentar, troca por troca, a entrada de um 6.º ex-ministro, Luís Amado, na substituição de Catroga na presidência do CGS. Não. Nada disto tem a ver com a fusão e confusão dos interesses privados com o Estado, trata-se de ganhos de inteligência e experiência… Disse também Manso Neto: «há muitos políticos que têm um valor acrescentado, não é pelo poder de influência, é pela inteligência, é pela experiência que têm na vida.»
A EDP é um «think tank» da energia eléctrica em Portugal. Define a estratégia e dá a táctica. Selecciona os jogadores e define as regras do jogo. E não recebe nada por esse trabalho.
A EDP é uma start up do novo «capitalismo sem riscos». A EDP lucra e o Estado, os consumidores, aguentam com os riscos, em nome da estabilidade regulatória, da sensibilidade dos accionistas.
Diz Mexia, «as pessoas gostam de estabilidade, gostam que as regras do jogo sejam mantidas» (Público, 2 de Outubro de 2018). O que mostra que andaram distraídos e não leram os folhetos4 das privatizações da EDP e REN, com a chancela da CMVM que avisavam para «os riscos regulatórios». Deve ter sido pela descoberta do «capitalismo sem riscos» que recebeu o Honoris Causa do ISEG/Universidade de Lisboa!
A EDP é, em simbiose com a Boston Consulting Group, um depósito de adidos. Quadros especialistas para directores-gerais, assessores de gabinetes ministeriais, gestores públicos e privados, e etc., e ninguém lhe paga essa formação.
A EDP é uma espécie de BCE. Está acima do Banco de Portugal e do Governo. Fixa taxas de juro e de desconto. E diz ao Estado quanto quer pagar – assim aconteceu a partir do DL 32/2013 de 26 de Fevereiro5, que alterou o DL 240/2004 – o tal dos CMEC – e permitiu a Portaria 85-A/2013, onde a EDP diz ao Estado quanto vai pagar de taxa de juro dos encargos financeiros da parcela fixa dos CMEC.
A EDP paga impostos, quando paga, porque se o Governo não fizer aquilo que ela quer, não paga! E acha que pagar impostos (como as outras empresas) é ser o abono de família do Estado. A EDP considera a CESE – Contribuição Extraordinária sobre a Energia – e o IEC – Imposto Especial sobre o Consumo – como corte de «rendas excessivas» (que para a EDP, como sabemos, não existem). E até a própria Contribuição para o Audiovisual (CAV) a EDP, como faz a cobrança, acha, «adicionalmente», que devia ficar do lado dela! Ou que, pelo menos, o Estado devia usá-la para pagar o défice tarifário à EDP. Notável!
Temos de estar de acordo com António Mexia. A EDP é de facto o abono de família do Estado. Sem a EDP o Estado não funcionava. De facto um verdadeiro canivete suíço de sucessivos governos do PS, PSD, CDS. O detalhe que estraga isto tudo, são as tarifas da energia eléctrica que pagamos. Das mais altas da União Europeia.
- 1. Na sua longa apresentação na Comissão de Inquérito António Mexia defendeu que «não há rendas excessivas» e que «há dois mitos»: «a EDP beneficiar com o défice tarifário» e a «falta de concorrência na Energia».
- 2. Na Recomendação da AdC denuncia-se a manipulação da EDP, com «danos de cerca de 140 milhões de euros para o SEN (Sistema Eléctrico Nacional) e para os consumidores», na disponibilização dos geradores de centrais hidroeléctricas, «em particular nos casos em que uma barragem dispõe simultaneamente de grupos geradores em regime CMEC e grupos geradores em regime de mercado». A AdC acabou por condenar a EDP, que recorreu para tribunal.
- 3. A revista da EDP (EdpOn n.º 25, Fevereiro/Março de 2012) dá conta da 8.ª e última fase da privatização total da EDP, e tem uma sugestiva capa: «Maior Privatização de Sempre», «Mexia reconduzido», «Eduardo Catroga eleito Presidente CGS», «A Caminho do Futuro»
- 4. Os folhetos das privatizações, nomeadamente da 8ª e última fase (como os de anteriores fases), assinalam e também avisam os putativos investidores de riscos, dizendo: «O investimento nas Acções da EDP envolve riscos. Antes de ser tomada qualquer decisão de investimento dever-se-á ponderar toda a informação contida neste Prospecto (…)». E no Prospecto (2.º Capítulo, páginas 30/66) vinham indicados, entre outros, como factores de risco: 2.1.2-«medidas adicionais do Estado português para limitar o aumento dos preços da energia»; 2.1.4-«os resultados da EDP são fortemente afectados pelas normas legais e regulamentares implementadas por várias entidades públicas»; 2.1.5-«nas actividades das redes reguladas (…) as revisões regulatórias periódicas podem implicar perdas significativas de proveitos»; 2.1.8-«A EDP não pode prever, ou sequer excluir medidas regulatórias ou legais que possam ter um efeito adverso nos resultados da EDP».
- 5. A alteração do DL 240/2004/CMEC foi feita pelo DL 32/2013, que passou a redigir assim a sub alínea iv) da alínea b) do nº 4 do artº 5:
«A taxa nominal, cujos termos e condições para a sua aplicação são aprovados por portaria do membro do Governo responsável pela área da energia, após proposta apresentada pelo produtor».
Isto é, se não há «proposta do produtor», a EDP, o Estado, não pode mexer na taxa!
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