Tendo escapado às chamadas «primaveras árabes» (houve quem na altura desejasse que tivesse sido uma segunda Líbia), este país chegou a atingir altos níveis de desenvolvimento regionais.
Depois de vencida a guerra provocada por diferentes correntes islamitas, que entre 1991 e 2014 provocou mais de 200 mil mortos, o país conseguiu uma notável recuperação, comprometida pela queda do preço do petróleo, o que levou à redução de alguns índices económicos, como o saldo da balança comercial (que há muito era positivo e passou a negativo em 2017) e à redução dos ritmos de crescimento económico. O Le Monde, em editorial nos primeiros dias destes acontecimentos, afirmou que a candidatura de Bouteflika foi a centelha que acendeu um rastilho de anos e anos de má governação. Alguma oposição de esquerda refere que salários baixos e deficientes condições de vida coexistem com grandes privilégios do Estado para com a camada dirigente do país. A maioria dos manifestantes são jovens estudantes.
Até ao dia de hoje a cobertura mediática dos incidentes, quer entre nós, quer noutros países, tende a considerar com simpatia estas ações, não recolhendo opiniões do governo.
Da imprensa consultada só o Avante!, citando a agência Sputnik, transmitiu a opinião de um dirigente da Frente de Libertação Nacional (FLN), o partido que dirigiu a luta independentista e que, com outras forças políticas, integra a aliança presidencial, Walid ben Qarun. Ele explicou que as manifestações provam que a Argélia é um país democrático, onde os cidadãos são livres de expressar as suas posições políticas. Considera, no entanto, que estes protestos não são promovidos por nenhuma força política argelina, tratando-se antes de ataques manipulados do exterior. «É uma guerra de quinta geração. Forças estrangeiras atacam o país com a ajuda dos meios de comunicação e das redes sociais»1.
A Argélia e a França
Desde o surgimento na Argélia de uma mobilização contra um quinto mandato de Abdelaziz Bouteflika, a França, antiga potência colonial, interveio com muito cuidado. Mas se ela garante não interferir na situação, esta não lhe é obviamente indiferente. E a pressão e ingerência são evidentes na evolução das intenções de Bouteflika nestas duas semanas.
Desde a formalização, em 10 de Fevereiro, da candidatura do presidente argelino à sua própria sucessão, mesmo que de duração limitada para convocar novas presidenciais antecipadas, a Argélia é palco de manifestações.
Na oposição, os partidos tradicionais não encarnam, aos olhos dos manifestantes, uma alternativa credível a um campo presidencial determinado em permanecer no controle do país.
Entretanto Bouteflika desistiu de nova candidatura, adiando as eleições para realizar, antes das mesmas, o seu projecto de Conferência Nacional sobre o futuro da Argélia.
A França e a Argélia têm laços de interdependência. Devido à sua história comum e apesar da conflitualidade com a Argélia quando, nos anos 50, esta lutava pela independência, a França dificilmente pode ignorar a situação neste país. A presença no seu território de um grande número de argelinos de nacionalidade ou origem é um sinal muito concreto dos laços que unem os dois países. Além dos aspectos humanos e históricos, os dois países também estão economicamente vinculados. A Argélia é o principal parceiro económico da França na região do Oriente Médio e Norte da África (MENA). O comércio entre os dois países atinge o valor de cinco mil milhões de dólares e mais de 500 empresas francesas estão sediadas na Argélia.
Além disso, embora Paris e Argel tenham expressado repetidamente as suas diferenças em relação à resolução de conflitos internacionais como os da Síria ou da Líbia, a sua cooperação em termos de segurança continua a ser indispensável por motivos comuns. A estabilidade da Argélia, interface geográfico entre o Mediterrânico e uma faixa saheliana – sempre muito instável – a sul desta, constitui motivo de preocupação elevado para a França e outros países da União Europeia.
No dia 4 de Março, o Quai d’Orsay dava prova de que Paris se manteria neutra face aos acontecimentos, apesar de contactos diplomáticos de conteúdo não revelado.
A perspectiva de crescer o ritmo da imigração para a França «é um assunto real», segundo afirmou à France Press um ministro, cuja identidade não foi revelada, acrescentando pensar «este é o maior “objectivo” político dos próximos dias e semanas, num cenário de eleições europeias. Mobiliza o Presidente da República e o Primeiro Ministro». Segundo este ministro francês, as repercussões possíveis desta crise são numerosas: «instabilidade, questões de segurança, imigração, questões económicas, sentimentos e comportamentos de nossos compatriotas franco-argelinos».
Essa atenção à Argélia também está a envolver uma parte dos políticos franceses. «A desestabilização do regime argelino levaria a uma inundação migratória sem precedentes na Europa, por isso é do interesse da França», alertou em 4 de Março, na France 2, Jordan Bardella, líder do Rassemblement Nacional (RN) para as próximas eleições europeias. Por seu lado, o deputado socialista Luc Carvounas, vice-presidente do grupo parlamentar de amizade França-Argélia, disse no mesmo dia, na Radio Sud, estar «muito preocupado» e «muito atento e vigilante» à situação argelina.
Neste contexto, Paris é forçada a pesar cada palavra. Uma crítica às autoridades argelinas seria interpretada como uma interferência, um silêncio seria interpretado pelos opositores de Abdelaziz Bouteflika como um apoio implícito das autoridades francesas a este último. Também no cenário político francês, a política do Quai d'Orsay em relação à situação argelina é minuciosamente examinada. Em outras palavras: um posicionamento agudo da França poderia causar uma profunda turbulência na Argélia, mas também na França, havendo nos meios diplomáticos quem expressasse preocupações. «Registamos a candidatura do presidente Bouteflika. Desejamos que a eleição presidencial decorra em boas condições. É ao povo argelino que cabe escolher os seus dirigentes e decidir do seu futuro».
Pela primeira vez Macron pronunciou-se ontem, dia 13, sobre a questão após o anúncio da renúncia de Abdelaziz Bouteflika a candidatar-se a um quinto mandato como chefe de Estado argelino. «Congratulo-me com a decisão do Presidente Bouteflika, que assinou uma nova página no desenvolvimento da democracia argelina», disse Emmanuel Macron numa conferência de imprensa com o seu homólogo do Djibouti, Ismaïl Omar Guelleh. Mas acrescentou também: «saúdo a dignidade com que as pessoas, especialmente os jovens da Argélia, foram capazes de expressar as suas esperanças, o seu desejo de mudar, e o profissionalismo das forças de segurança».
O chefe de Estado francês não ficou por aí, expressando também o desejo de que a «conferência nacional», com o objectivo de redigir um projecto de Constituição até ao final de 2019, possa ser organizada «nas próximas semanas e meses para permitir em uma "transição razoável». «Acho que é um sinal de maturidade [e] faremos de tudo para acompanhar a Argélia nessa transição de amizade e respeito».
Os mandatos de Bouteflika
Em 1999, Bouteflika concorreu como candidato único às eleições presidenciais da Argélia, sendo eleito com 74% dos votos, segundo números oficiais. Os outros seis candidatos de oposição denunciaram um esquema de fraude em favor de Bouteflika, candidato apoiado pelos militares, e desistiram de suas candidaturas. Como presidente, Bouteflika conduziu o processo de pacificação da Argélia para colocar fim ao longo conflito civil iniciado em 1992, concedendo ampla amnistia a grupos militantes islâmicos que actuavam dentro do país. Também se concentrou na reconstrução e na recuperação e reforço da sua reputação internacional, por exemplo, mediando um acordo de paz entre Eritreia e Etiópia.
A 14 de Janeiro de 2003 foi agraciado com o Grande-Colar da Ordem do Infante D. Henrique de Portugal, numa altura em que a Argélia já se tornara no fornecedor do gás natural em Portugal.
Em 8 de Abril de 2004, foi reeleito para um segundo mandato presidencial com 83,49% dos votos, em uma eleição dentro da legalidade, segundo observadores internacionais, apesar da contestação de seu rival e antigo primeiro-ministro Ali Benflis. Em 2005 organizou um referendo à «Carta presidencial para a Paz e a Reconciliação Nacional», numa tentativa de colocar um ponto final à guerra civil de 1992.
Apesar da aprovação em massa no referendo e dos esforços para restaurar a paz e reduzir a actividade e a violência de grupos rebeldes do país, alguns dos quais se articulavam já com a rede da Al-Qaeda e formaram o grupo Al-Qaeda no Magrebe Islâmico, responsável por uma série de atentados suicidas durante o seu segundo mandato.
Embora se especulasse continuamente sobre o seu estado de saúde, Bouteflika concorreu a um terceiro mandato presidencial em 2009, sendo reeleito com 90,24% dos votos, enquanto os seus adversários denunciaram supostas fraudes e manipulações na campanha. Em Abril de 2013 sofreu um acidente vascular cerebral, mas manteve-se no cargo.
Considerado grande favorito para um quarto mandato em 2014, apesar do boicote e denúncias de fraude de oposicionistas, foi reeleito em 17 de Abril pela quarta vez consecutiva, com 81,53% dos votos, à frente do ex-primeiro-ministro Ali Benflis.
Abdelaziz Bouteflika faz parte do grupo de dirigentes da Frente de Libertação Nacional (FLN) que combateu na guerrilha contra a ocupação colonial dos franceses. É o décimo presidente desde a declaração da independência em 1962 e teve papel decisivo na vitória contra os grupos islamitas desde 1999 até 2004.
Com a eventual recandidatura2, que chegou a registar nos tribunais, Bouteflika jurou «solenemente diante de Deus e do povo argelino» que, caso vencesse as eleições, iria mais tarde convocar «uma eleição presidencial antecipada». Essa futura eleição, acreditava, iria assegurar a «sucessão nas condições incontestáveis de serenidade, liberdade e transparência». Entretanto nos últimos dias comprometeu-se a «não ser candidato3, adiando as eleições para data posterior, depois de concluído o seu projecto de realizar uma Conferência Nacional sobre o futuro da Argélia».
Mensagem ao país de Bouteflika
Nesta mensagem3 o Presidente referiu que o fim da guerra com grupos islamitas permitiu, desde o seu primeiro mandato, um largo desenvolvimento económico, vencer as baixa nos preços do petróleo, proceder à reconstrução maciça das infra-estruturas básicas, a possibilidade da diversificação da economia e outras exportações além dos hidrocarbonetos, reformas na justiça, educação, administração e economia. Equacionou progressos e recuos dependentes de condições externas.
Sublinhou que a Argélia defronta desafios relacionados com a consolidação de uma sociedade de progresso, justiça e equidade, política e consenso, socialmente inclusiva, baseada em uma economia produtiva e competitiva, gradualmente libertada, na economia e sistema financeiro, da dependência no que diz respeito aos hidrocarbonetos.
Afirmou também que os argelinos devem agora enfrentar várias restrições, incluindo os relacionados com o crescimento populacional, a multiplicação das necessidades a satisfazer, a erosão dos recursos financeiros externos, as incertezas da economia global, os problemas regionais e internacionais. E que devem trabalhar para evitar uma sociedade de comportamento contrário aos princípios de integridade e valores éticos de respeito para com o trabalho e sentido do esforço colectivo.
Referiu que, no entanto, é especialmente na conjunção de vontades e energias, ao serviço do interesse nacional, que os argelinos serão capazes de ter sucesso na transformação para esta sociedade de progresso, justiça e equidade, «à qual todos nós aspiramos».
Afirmou que é com essa convicção que apelava, há vários meses, às forças da Nação, para promover um consenso patriótico e político que lhes permita mobilizar-se melhor para preservar a conquistas, defender os melhores interesses e permitir que o país continue a progredir em unidade e estabilidade, no meio de um ambiente regional altamente perturbado e num contexto internacional carregado de incerteza.
Concluiu afirmando a sua convicção que o consenso é uma virtude essencial, graças ao qual o povo conseguiu assegurar a coesão nas suas fileiras para enfrentar grandes desafios, como o da gloriosa Revolução de Novembro e, «mais perto de nós» os da Concórdia e Reconciliação Civil e Nacional.
Argélia uma grande potência regional
De acordo com a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), a Argélia tem a 17.ª maior reserva de petróleo do mundo e a segunda maior da África, ao mesmo tempo que tem a 9.ª maior reserva de gás natural no mundo. A Sonatrach, a empresa nacional de petróleo, é a maior empresa na África.
A Argélia tem uma das maiores forças armadas na África e um dos maiores orçamentos de defesa no continente. A maioria das armas da Argélia são importadas da Rússia, com quem mantém uma aliança próxima.
O país é membro da Organização das Nações Unidas (ONU), da União Africana (UA) e da Liga Árabe praticamente depois de sua independência, em 1962, e integra a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) desde 1969. Em Fevereiro de 1989 a Argélia participou, com os outros estados magrebinos, na criação da União do Maghreb Árabe. A Constituição argelina define «o Islão, os árabes e os berberes» como «componentes fundamentais» da identidade do povo argelino, e o país como «terra do Islão, parte integrante do Grande Magreb, do Mediterrâneo e da África».
A Revolução anticolonial e a independência
Antes da Revolução, a crise social chegou ao seu limite, com índices de analfabetismo subindo cada vez mais enquanto que a população nativa era expropriada das suas terras. A Argélia foi obrigada a enfrentar uma guerra prolongada de libertação em virtude da resistência dos colonos franceses, que dominavam as melhores terras. Em 1947, a França estende a cidadania francesa aos argelinos e permite o acesso dos muçulmanos aos postos governamentais, mas os franceses da Argélia resistem a qualquer concessão aos nativos. Nesse mesmo ano é fundada a Frente de Libertação Nacional (FLN), para organizar a luta pela independência. Uma campanha de atentados contra árabes (1950-1953) desencadeada por colonos direitistas, tem como reacção da FLN uma onda de atentados nas cidades e a guerrilha no campo. Em 1958, rebeldes exilados fundam no Cairo um governo provisório republicano. A intervenção de tropas de elite da metrópole (Legião Estrangeira e páraquedistas) amplia a guerra. Acções terroristas, assassinatos, torturas terríveis e deportações caracterizam a acção militar da França.
Os nacionalistas e oficiais de ultra-direita dão um golpe militar na Argélia em 1958. No ano seguinte, em 1959, o presidente francês, Charles de Gaulle, concedeu a autodeterminação aos argelinos.
Mas a guerra intensifica-se em 1961, com a entrada em acção da organização terrorista de direita OAS (Organização do Exército Secreto), comandada pelo general Salan, um dos protagonistas do golpe de 1958. Ao terrorismo da OAS a FLN respondeu, defendendo-se e atacando. No mesmo ano fracassam as negociações franco-argelinas, por discordâncias em torno do aproveitamento do petróleo descoberto em 1945. Em 1962 é acertado o Armistício de Évian, com o reconhecimento da independência argelina pela França em troca de garantias aos franceses na Argélia. A República Popular Democrática da Argélia é proclamada após eleições em que a FLN se apresenta como partido único e Ben Bella torna-se presidente. Na cúpula do estado manteve-se em geral a FLN com mais nove presidentes.
Na guerra de libertação registaram-se cerca de 1,5 milhões de mortos.
Com o actual presidente, a Argélia alterou a sua constituição, depois do seu segundo mandato (o limite legal era de dois mandatos) de maneira a passarem a existir três novos mandatos que, se se confirmasse a vitória em 18 de Abril, seria o último e de duração breve.
Apesar do domínio da cultura e da etnia berbere na Argélia, a maioria dos argelinos identifica-se com uma identidade árabe, especialmente depois de o nacionalismo árabe se ter levantado, no século XX. Os berberes e os argelinos que falam berbere são divididos em muitos grupos com línguas variadas. O maior destes são os cabilas, que vivem na região de Cabília ao leste de Argel, os chaoui do Nordeste Argélia, os tuaregues no deserto do sul e os shenwa do norte do país.
Durante o período colonial, havia uma grande parte da população (10% em 1960) de europeus, que se tornou conhecida como pied-noirs
A Argélia e o apoio aos movimentos de libertação das colónias portuguesas e aos exilados portugueses
Após a independência, e no seguimento de uma política de não-alinhamento com os dois grandes blocos, mas de solidariedade ideológica, os líderes argelinos prestaram um grande auxílio a alguns movimentos de africanos de libertação, nomeadamente aos angolanos, moçambicanos guineenses e cabo-verdeanos, mas também a grupos de exilados políticos portugueses. Esta política de solidariedade permitiu o acentuar da luta contra os colonizadores desses territórios, por parte destes movimentos autónomos, e dos exilados políticos portugueses contra a ditadura fascista de Oliveira Salazar (Frente Patriótica de Libertação Nacional-FPLN).
Também tem apoiado a Frente Polisário para a independência do território saaraui ocidental do reino de Marrocos, e não apenas da sua autonomia dentro do reino como defendeu há quatro dias Mohamed VI, o rei de Marrocos.
A guerra contra os grupos islamitas
A Guerra Civil Argelina foi um conflito armado entre o governo argelino e vários grupos de rebeldes islâmicos, que teve início em 1991. O número de mortos é estimado em 200 mil. O conflito terminou em vitória para o governo após a rendição da Exército de Salvação Islâmica e a derrota, em 2002, do Grupo Islâmico Armado.
Os argelinos pronunciaram-se em 2005 em força a favor da carta presidencial para a Paz e a Reconciliação Nacional, destinada a voltar a página da guerra civil. O «sim» ao referendo cifrou-se em 97,36 por cento dos votos. Mas, no entanto, continuaram a produzir-se conflitos de baixa intensidade em algumas áreas.
As dificuldades que a Argélia atravessou em 55 anos de existência, com duas guerras mortíferas, deixam prever que os argelinos não quererão que a situação interna do país fique descontrolada para benefício de actores que ainda não subiram ao palco.
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