A porta-voz da Câmara dos Representantes dos EUA, Nancy Pelosi, aterrou em Taiwan, dando origem a um dos mais graves incidentes diplomáticos entre as duas maiores potências mundiais nos últimos 25 anos. A visita de Pelosi realizou-se a despeito dos apelos da administração Biden em sentido contrário e dos avisos da República Popular da China, que considerou a visita um apelo à secessão daquele território chinês e, em resposta, prometeu acelerar o processo de integração da ilha. 2 de Agosto de 2022 
CréditosEPA / Taiwan Ministry of Foreign Affairs

Em Março do ano passado, a Autoeuropa foi obrigada a parar devido a uma escassez de semiconductores nos microchips. Num problema aparentemente isolado, perfilava-se uma carência à escala global, consequência de um conjunto de situações que, juntas, criaram a tempestade perfeita.

Produzidos em larga escala na Ásia, a chamada «Crise dos Microchips» despontou no epicentro de uma pandemia, da guerra económica entre os EUA e a China e até um incêndio numa das maiores fábricas de produção de semiconductores no mundo. Tudo isto provando que, numa economia globalizada, o simples bater de asas de uma borboleta pode gerar uma verdadeira tempestade na outra parte do mundo.

Para se ter uma ideia da dimensão do problema: os semiconductores são componentes capazes de conduzir correntes eléctricas, sendo também o principal elemento para colocar os microchips em funcionamento. A produção de cada microchip envolve centenas de processos, podendo levar meses a ser concluída. A par da morosidade, os microchips e semiconductores ganham particular importância uma vez que estão presentes em 300 sectores indústriais, que deles dependem.

A importância dos semiconductores é de tal ordem que uma gigante tecnológica como a Apple gasta 58 mil milhões de dólares anualmente na compra destes componentes, cuja escassez leva fábricas imensas a parar a produção. «Os chips são tudo» disse, ao The Guardian, Neil Campling, analista de tecnologia do Mirabaud Group, um grupo bancário suíço.

É aqui que esta história, e a importância dos semiconductores para o mercado económico, se cruzam com a ida de Nancy Pelosi a Taiwan e os interesses estratégicos dos EUA (e os interesses da própria, claro).

Uma aterragem com muito chips

Foi com apreensão que o mundo assistiu à aterragem do jacto da Presidente da Câmara dos Representantes dos EUA em Taiwan.

A par da evidente provocação à República Popular da China, muito se especulava sobre a passagem de Pelosi por Taipé. O que se sabe é que, para além da reunião com Tsai Ing-wen, Presidente de Taiwan, Nancy reuniu também com Mark Liu, Presidente da Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC). É esta última reunião que desperta, a olho nú, as atenções. Como é que essa empresa assume uma importância estratégica tão relevante para Nancy Pelosi? Esta reunião é o culminar de uma cronologia cujas coincidências podiam sair das páginas de um guião.

A TSMC poderia ser uma mera empresa taiwanesa, mas a sua importância global, pouco conhecida, fazem dela uma prioridade para os EUA, uma vez que dominan 54% do mercado global de semiconductores, segundo o site Visual Capitalist (Quadro 1). Os EUA, por exemplo, só controlam 7% do mercado. De acordo com a Forture, a TSMC vale 426 mil milhões de dolares.

10 maiores empresas de semiconductores por fatia de mercado

A TSMC ganhou ainda maior destaque após a Administração Trump, em 2020, ter colocado a Semiconductor Manufacturing International Corporation (SMIC), a maior fabricante de chips da China, numa lista negra que visava impedir relações comercias entre ela e as empresas tecnológicas norte-americanas. O Departamento de Defesa norte-americano classificou então a SMIC enquanto propriedade controlada pelo exército chinês, de forma a justificar o bloqueio.

Esta acção da Administração Trump aparentava ter um objectivo mais profundo do que uma mera preocupação com a Defesa Nacional. Desestabilizando uma empresa estratégica de um rival directo, num mercado cada vez mais centralizado, os EUA procuravam puxar para si a produção dos semiconductores. Numa linha já definida de reindustrialização, Trump chega a acordo com a TSMC para a construção de uma fábrica de microchips em Arizona, envolvendo um investimento de 12 mil milhões de dólares.

Para muitos, os valores envolvidos num negócio com uma empresa desconhecida criaram dúvidas, levando o próprio Senado a pedir esclarecimentos à Administração Trump sobre o negócio. Sobre o futuro da TSMC em solo americano, o Secretário de Comércio Wilbur Ross descreveu o negócio como o «renascimento na fabricação americana», deixando bem clara a sua importância estratégica.

Os meses foram passando e, chegados ao ano de 2021, Joe Biden toma posse como presidente do EUA. Com Biden, Nancy Pelosi, do Partido Democrata, fica alinhada com o presidente. Nesse ano, ainda marcado pelos impactos da pandemia, surge uma notícia que passa entre os pingos da chuva: uma holding chamada AllianceBernstein Holdings compra acções da Taiwan International Investment Management manifestando interesse na região.

A notícia podia não dizer absolutamente nada, nem ter relação com os chamados «actores políticos», mas a verdade é que nesse mesmo ano surge a discussão sobre a proibição da venda e troca de acções por parte dos membros do Congresso. Alegava-se que os congressista poderiam aproveitar-se da sua condição e de informações privilegiadas para fazer negócios, levantando questões éticas. Nessa altura, Pelosi, de olho nos seus próprios interesses, acabou por se opor à ideia dizendo: «Vivemos numa sociedade de mercado livre. Eles [os congressistas] devem poder participar nele». As declarações de Nancy Pelosi foram proferidas em Dezembro de 2021; a 27 de Janeiro de 2022 dá o passo e adquire acções da AllianceBernstein Holdings.

Capital Trades - site que acompanha os negócios dos políticos do Capitólio

Nancy Peloisi está ligada, por via do marido, Paul Pelosi, a um rol de negócios com largas dimensões. Entre 2020 e 2021, o casal passou a ter acções na AllianceBernstein Holding L.P., Alphabet Inc. (Class A e Class C), Amazon, American Express, Apple, Micron Technology, Microsoft Corporation, NVIDIA Corporation, Tesla, entre outras. Todas estas empresas, de uma forma ou de outra, necessitam dos tais microchips e semiconductores. Entretanto, Paul Pelosi vendeu as suas participações na NVIDIA Corporation, mas o interesse prende-se na AllianceBernstein Holding, que detém 5,97% da TSMC.

Para que nada falte ao certame de coincidências, eis que no presente ano de 2022 é aprovado o CHIPS Act que ,de acordo com a Semiconductor Industry Association (SIA), era «vital para o futuro da nossa economia, liderança tecnológica e segurança nacional». Para a SIA, o CHIPS Act apresentava-se como uma «prioridade nacional», avaliando que os EUA, em 1990, detinham 37% da produção mundial de semiconductores e, actualmente, detêm somente 12%. De acordo com a análise apresentada, a razão para tal decréscimo prende-se nos incentivos oferecidos pelos seus rivais directos e pelo custo de produção nos EUA, entre 25% a 50% mais elevado. O CHIPS Act propunha um incentivo à produção e investigação de 52 mil milhões de dólares, estabelecendo uma taxa de crédito de investimento de 25%.

O interesse parece ser geral nos EUA. A 3 de Maio, numa visita à fábrica da Loockheed Martin Corporation, empresa fabricante de productos aeroespaciais e que, neste momento, produz lança-misseis Javaline para a Ucrânia, Joe Biden revelou todas as suas aspirações. Ao afirmar que aprendeu, naquele dia, que cada lança-misseis precisa de 200 semiconductores e, ante a necessidade evidente de se produzir mais lança-misseis, Biden defende a necessidade de «investir em nós»: «Agora estamos de volta ao jogo, garantindo que nos tornamos os principais productores de semiconductores – chips de computadores que impulsiona a nossa vida moderna».

Para Biden, durante o discurso, era evidente que a corrida aos semiconductores é decisiva para a hegemonia armamentista: «É por isso que estamos a tornar o tão difícil quanto possível a obtenção por parte da Rússia de semicondutores e tecnologias avançadas que possam ser usadas para atualizar as suas forças armadas durante este conflito, e porque estamos a tomar medidas para facilitar o fornecimento do que precisamos aqui nos Estados Unidos durante uma escassez global de semicondutores.»

Além das dificuldades de produção causadas pela pandemia e pela guerra comercial entre a China e os EUA, acresce agora o conflito no Leste Europeu, pela dificuldade de importação da matéria-prima. Entre Dezembro de 2021 e Março de 2022, o preço do néon, um gás nobre necessário à produção, aumentou o preço em seis vezes. A Ucrânia produzia, até ao inicio da Guerra, metade do fornecimento global de néon e 90% do néon usado nos EUA. As duas principais fornecedores de néon eram as empresas Ingas e Cryoin, localizadas em Mariupol e Odessa, respectivamente. Já a Rússia detinha 40% do fornecimento global de paládio, usado também para certos componentes dos chips.

É aqui que a ida de Nacy Pelosi ganha o relevo. A deslocação a Taiwan não representa apenas uma questão de choque ideológico sobre a liberdade e a democracia, perfila-se também como um vasto conjunto de interesses económicos concretos, em que Pelosi se faz duplamente representar, uma vez que defende os interesses dos EUA e os seus pessoais, de classe.

Muito poderá mudar na actual correlação de forças, mas a tendência não está num abrandamento da relevância dos semiconductores. O que se consegue, desde já, afirmar é que quem controlar directamente esta industria, pode ficar na linha da frente dos avanços tecnológicos e condicionar efectivamente os ritmos de produção de diversos países.

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