A Lei 27/2006 (Lei de Bases da Proteção Civil), na sua redação atual, constitui a principal referência legislativa para a construção de todo o edifício institucional do sistema, cuja finalidade é «prevenir riscos coletivos inerentes a situações de acidente grave ou catástrofe, de atenuar os seus efeitos e proteger e socorrer as pessoas e bens em perigo quando aquelas situações ocorram».
Para o cumprimento deste seu relevante fim, o sistema tem «caráter permanente, multidisciplinar e plurissetorial, cabendo a todos os órgãos e departamentos da Administração Pública promover as condições indispensáveis à sua execução, de forma descentralizada, sem prejuízo do apoio mútuo entre organismos e entidades do mesmo nível ou proveniente de níveis superiores».
No conjunto de citações acima feitas identificamos, de modo bastante claro, a missão do sistema, bem como as responsabilidades do Estado na sua operacionalização.
O problema é que a Lei aqui em apreciação, quanto à articulação e desenho das suas estruturas políticas e operacionais, já está hoje consideravelmente fora de tempo, se tivermos em consideração a legislação regulamentadora aprovada ao longo dos anos, à sua revelia, ou mesmo as interpretações extensíveis (em alguns casos, mesmo abusivas) do seu articulado, do qual o período da pandemia da Covid-19 constitui um gritante exemplo.
Noutra perspetiva importa ter em conta que a lei foi construída há quase duas décadas, no rescaldo dos efeitos provocados pelos incêndios florestais (hoje designados por incêndios rurais), ocorridos em 2003 e 2005, não tendo sido antecedida de qualquer avaliação do sistema, mas apenas impulsionada pelas circunstâncias ou, uma vez mais, pela pressão mediática.
Passados 17 anos da entrada em vigor da Lei de Bases da Proteção Civil, revista por alterações pontuais, como a verificada em 2015, atentos ao quadro de risco repetidamente caracterizado, tanto pela academia como por instâncias internacionais, seria natural que a Assembleia da República e (ou) o Governo desenvolvesse trabalho de reflexão participada sobre esta matéria, iniciando o processo de construção de uma nova Lei de Bases da Proteção Civil, alicerçada num conceito estratégico, alinhado com as exigências colocadas pela sociedade de risco, bem como pela preservação da segurança e do direito ao socorro, pronto e qualificado, que assiste a todos os cidadãos, em qualquer ponto do território nacional.
A urgência da implementação deste processo justifica-se pela versão da lei em vigor, no que à materialização de alguns dos seus princípios se refere, uma vez que estes são no essencial e apenas, figuras de estilo.
«Nesta data e a este ritmo, 600 pessoas vão perder a vida até ao fim do ano nas estradas portuguesas; não há efetivos suficientes para fazer vigilância nas praias, apinhadas de gente, porque ainda não entramos na chamada época balnear; morre mais gente vítima de incêndios em habitações do que em incêndios de qualquer outro tipo»
Por agora, vejamos alguns factos comprovativos da realidade do país, quanto aos princípios da prevenção e da precaução: nesta data e a este ritmo, 600 pessoas vão perder a vida até ao fim do ano nas estradas portuguesas; não há efetivos suficientes para fazer vigilância nas praias, apinhadas de gente, porque ainda não entramos na chamada época balnear; morre mais gente vítima de incêndios em habitações do que em incêndios de qualquer outro tipo; o Referencial de Educação para o Risco destinado à Educação Pré-Escolar, ao Ensino Básico e ao Ensino Secundário, disponível há dez anos, continua a ser um mero instrumento lúdico, adotado por algumas comunidades escolares, mas sem qualquer avaliação quanto às suas consequências, na construção de uma futura cultura de risco; apesar de vivermos numa sociedade mediática, o país continua a não dispor de uma estratégia de comunicação e sensibilização para o risco, dirigida ao conjunto da sociedade.
Muitas outras questões poderiam ser formuladas, a propósito destes dois princípios, bem como quanto aos restantes seis em que a doutrina de proteção civil e o seu modelo jurídico-constitucional se sustenta. Deixaremos esse exercício para mais tarde.
Por agora, fica uma pergunta final: para quando uma Proteção Civil centrada no cidadão e mobilizadora da sua intervenção e participação, representada por um quadro legislativo, onde para além das estruturas políticas e dos serviços, lhe seja dado o protagonismo e a responsabilidade, sem a qual o sistema não é mais do que um palco onde se mudam estruturas, nomeiam cargos e produzem experiências inconsequentes, porque sem pensamento nem consistência doutrinária?
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