|50 anos do 25 de Abril

Qualquer Abril

Abril que vivemos este ano não é um Abril qualquer, mas um Qualquer Abril pleno de vontade de afirmar a universalidade da madrugada que se esperava, movida pela intensidade da força daqueles que tomaram pelas mãos o seu destino.

A intensidade de uma força é o produto da massa por uma aceleração. É preciso andar várias décadas para trás para encontrar um evento, à escala global, que tenha produzido uma força tão intensa como aquela que enclausurou populações em massa num tempo muito acelerado. Esse evento foi a recente pandemia.

Os efeitos físicos, em sentido figurado, mais intensos que resultaram dessa clausura alucinante não são aqueles gravados nas memórias dos actos mecânicos da colocação de máscaras ou a esterilização da proximidade e dos afectos. Os efeitos mais intensos  encontram-se no campo das ideias. Quase etéreos e, por isso, altamente voláteis, o seu manuseamento é de difícil acesso, uma vez estabelecidos. Ideias cujo poder não emerge do seu núcleo, mas no poder que, nos pertencendo, lhes atribuímos. 

Veja-se; o vocábulo «resiliência» plantou a ideia de que após o choque pandémico seríamos capazes de recuperar(-nos) e superar(-nos). Que as massas seriam capazes de, perante termos vislumbrado uma crise global, emergir da noite com a consciência disposta a identificar na insustentável sobre-exploração humana o mal maior e daí prontos estaríamos a organizar melhor a sociedade. Nem uma coisa nem outra. 

No sentido literal da física, resiliência significa propriedade de um corpo de recuperar a sua forma original após sofrer choque ou deformação. 

É nesse sentido que, o sistema dominante organizador das nossas vidas, responsável pela crise pandémica e muitas outras anteriores, cultivou esta ideia de resiliência no nosso vocabulário. 

«A intensidade da sua força mede-se na fragmentação das massas: entre os que, por circunstâncias materiais ou intangíveis de diversos tipos de privação, se alienam da vida colectiva, e os que, por estimulada ganância, se crêem ainda mais indivíduos. A crença no expoente máximo do individualismo está aí mais do que nunca.»

Não fomos nós que saímos mais resilientes. Foi o capitalismo. Ultrapassou até o significado da física como propriedade de um corpo de recuperar a sua forma original após sofrer choque ou deformação. Não recuperou. Saiu mais forte. 

A maior intensidade da sua força actual não se mede, como na segunda lei de Newton, pelo produto da massa por uma aceleração. A intensidade da sua força mede-se na fragmentação das massas: entre os que, por circunstâncias materiais ou intangíveis de diversos tipos de privação, se alienam da vida colectiva, e os que, por estimulada ganância, se crêem ainda mais indivíduos. A crença no expoente máximo do individualismo está aí mais do que nunca.

Está aí mais vocal (e, sobretudo, também mais boçal) – veja-se na gradual perda de espaço do jornalismo, especialmente o de investigação, para os fazedores de opinião e as suas falsas agendas neutras. 

Está aí mais destemida e desmedida – veja-se como avançam os esforços belicistas da corrida ao armamento. 

Está aí mais sofisticada, indelével e direccionada – vejam-se as perversões do advento da Inteligência Artificial para fabricações de factos e de realidades alternativas. 

Mas, acima de tudo, está aí mais eficaz porque se aproveita de uma das maiores fraquezas humanas – a luxúria ou falsas promessas de tal – para inculcar a sua mais poderosa ideia: sós podemos almejar ser tudo, enquanto juntos a subjectividade de cada um se perderá e com essa perda o potencial de atingirmos o pináculo da nossa realização individual. 

O filósofo Giorgio Agamben escreveu num curto ensaio «Qualquer» que o «ser que vem é o ser qualquer». Qualquer não é usado aqui como algo ou alguém que é indiferente, mas a vontade de ser tal qual é. Nesta relação com o desejo de ser, escreve Agamben, a «singularidade liberta-se assim do falso dilema que obriga o conhecimento a escolher entre o carácter inefável do indivíduo e a inteligibilidade do universal».  

Leio daqui que não há paradoxo entre sermos singulares e sermos universais. Entre desejarmos a realização do ser qualquer e a universalidade do respeito pela dignidade do outro também se poder realizar, sem exploração mútua. 

Abril que vivemos este ano não é um Abril qualquer, mas um Qualquer Abril pleno de vontade de afirmar a universalidade da madrugada que se esperava, movida pela intensidade da força daqueles que tomaram pelas mãos o seu destino. Sós, Abril não teria havido.

Este Abril que vivemos terá de ser por todos que queremos viver. Tal como o primeiro, tal como no poema: inicial, inteiro e limpo. 

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