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Ramal «Rodoviário» da Lousã – inauguração de um recuo tecnológico

Quem estava convencido que o período da grande aposta na rodovia estava definitivamente vencido e substituído pela aposta no sistema ferroviário tem de concluir que estava redondamente enganado!

Os utentes exigem a recolocação dos carris e o avanço das obras no Ramal da Lousã
CréditosPaulo Novais / Agência Lusa

Nem se trata apenas da opção por um modo ou por outro para solucionar um caso de transportes em determinada zona do País, trata-se mesmo de destruir a linha, destronar o comboio para fazer do mesmo lugar uma estrada para o autocarro.

Nem Cavaco Silva, que encerrou 860 km de linhas em apenas cinco anos, de 1987 a 1992, imaginaria tanta consistência na política de direita de PS, PSD e CDS para os transportes, de tal modo que em 2024 viesse a ser inaugurado um serviço de autocarro no Ramal da Lousã. 

De facto, depois de 32 anos de trapalhadas, iniciadas em 1992 com o encerramento do tráfego de mercadorias, com um projecto de Metro iniciado em 1996 e extinto em 2017 sem deixar nada mais que custos, e depois de centenas de milhões de euros e de 15 anos sem carris nem comboios, aproxima-se então, finalmente, o momento em que as populações de Coimbra, Miranda do Corvo e Lousã voltarão a ter um serviço de transporte público de passageiros através do Ramal da Lousã, que vai ser reaberto no próximo semestre com pompa e circunstância.

O caso não é para menos. Quase 120 anos depois de inaugurado o transporte ferroviário de passageiros no Ramal da Lousã, vai ser em breve reinaugurado, devolvendo-o aos utentes como Ramal Rodoviário e transporte em autocarro com uma oferta menor e tempos de percurso semelhantes aos ali praticados com as automotoras da CP até 2009.

Nesse mesmo ano, o último de funcionamento do ramal ferroviário, o transporte de mais um milhão de passageiros, segundo a CP, demonstra bem a relevância desta infraestrutura, uma grande obra de engenharia com sete túneis e nove pontes totalizando, respetivamente, 1014 m e 607 m de obras de arte, permitindo ligação rápida entre Coimbra B e Serpins com 36,8 km de extensão e condições de prolongamento para Gois e Arganil.

A procura vinha crescendo à medida que a linha se foi suburbanizando com a construção em redor de Coimbra, havendo cada vez mais utentes a apanhar o comboio para trabalhar ou estudar na cidade. Em 1985 havia oito comboios em cada sentido e dez anos depois a CP já oferecia 17 comboios em cada sentido entre Coimbra e Serpins, em cerca de uma hora. Mas em 2010 a política de direita ordenou o levantamento dos carris.

Logo passados dez anos do encerramento do ramal, ficou à vista a dimensão da redução de utentes do transporte público, com o transporte rodoviário alternativo a perder em 2019 já um terço dos utentes, tendo transportado menos 337 mil passageiros que em 2009.

«O País vai inaugurar um recuo tecnológico que será apresentado como um sucesso da liberalização. O âmbito e o desempenho da CP – que deveria ter continuado una e pública, e que tem de voltar a sê-lo – foram também aqui amputados para renascerem como mais concessão privada em potência, com as populações fortemente prejudicadas na sua mobilidade durante anos»

Agora, passados mais cinco anos, esta perda terá aumentado, continuando o transporte rodoviário alternativo por vias sinuosas e estreitas e o tempo de percurso semelhante ao do comboio de tração a vapor do início do século passado. Um transporte alternativo que custa dinheiro – mais de um milhão de euros por ano... durante 15 anos!

Como populações e trabalhadores oportunamente alertaram, o avanço tecnológico com maiores repercussões no conforto e na redução dos tempos de percurso seria a eletrificação do ramal e a operação, mais rápida, com material circulante ferroviário elétrico, modernização sem necessidade de interrupção da circulação ferroviária, que tudo indica permitiria continuar a aumentar a procura em vez de a perder e de infernizar a vida aos utentes como vem acontecendo há 15 anos.

Os próprios manuais do IMT [Instituto da Mobilidade e dos Transportes] indicam uma progressão natural nos modos de transporte coletivo público urbano e suburbano. Do mais básico, o transporte rodoviário em sítio banal (ou seja, a normal carreira de autocarro) para sistemas que progressivamente garantem uma maior e mais rápida oferta: o autocarro em via reservada (BUS); o autocarro em sítio próprio (Metro BUS); o modo ferroviário em sítio banal (Elétrico); o modo ferroviário em via reservada (Elétrico) e em sítio próprio (Metro de Superfície ou Tram-Train), chegando por fim ao Comboio, o meio de maior e melhor oferta. Com a evolução do meio selecionado a acontecer em função da evolução da procura.

Obviamente por razões que não decorreram deste tipo de progressão de opções, o Ramal da Lousã foi à época concebido e construído com a tecnologia de então, que se verifica continuar a ser nos dias de hoje a de maior qualidade e capacidade de transporte terrestre.

O Metro BUS teria sentido se antecedesse e deixasse criadas as condições de evolução para a solução ferroviária. Mas, ao contrário, o recuo tecnológico é uma afronta aos interesses das populações e às necessidades de desenvolvimento do território, ao arrepio dos procedimentos técnicos elementares.

Em vez de se ter mantido esse patamar de qualidade do modo ferroviário, e melhorando-o, vai ser inaugurado um serviço de autocarro com o ramal ferroviário travestido de ramal rodoviário.

A continuidade do mesmo modo de transporte nas zonas suburbana e urbana não justifica o recuo tecnológico adotado, antes justificando maior envolvimento dos SMTUC [Serviços Municipalizados de Transportes Urbanos de Coimbra] na formulação das soluções mais adequadas e não o seu afastamento.

E, por absurdo, comparando a parte suburbana do Ramal da Lousã com 35 km e os troços suburbanos do Carregado ou do Pinhal Novo até Lisboa com extensões semelhantes, não é obviamente expectável que os passageiros diários destes serviços ferroviários se entusiasmassem com uma mudança do modo ferroviário para o rodoviário.

O País vai inaugurar um recuo tecnológico que será apresentado como um sucesso da liberalização. O âmbito e o desempenho da CP – que deveria ter continuado una e pública, e que tem de voltar a sê-lo – foram também aqui amputados para renascerem como mais concessão privada em potência, com as populações fortemente prejudicadas na sua mobilidade durante anos, com redução da oferta e de atratividade para o transporte público e os contribuintes a pagar a festa de várias centenas de milhões de euros para gáudio de uma clientela de capitalistas.

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