Dos escribas ao serviço da promoção do neoliberalismo, João Miguel Tavares (JMT) é seguramente um dos mais capazes. Perante um esmagador relatório da Inspecção-Geral de Finanças (IGF), ele vem a terreno para salvar o que (lhe) interessa: as privatizações e o mito do milagroso gestor privado.
Usa para tal três truques: amnistia todos os crimes cometidos pelos governantes do PSD/CDS/PS, com base na tese de que todos os políticos são maus (que é a melhor forma de inocentar os políticos que ele apoia); ignora uma das principais conclusões da IGF, a de que a TAP, sob gestão privada sublinho, cometeu crimes graves em benefício directo dos seus administradores privados; e perante o facto novamente demonstrado publicamente (e sobre o qual o PCP já escreveu, literalmente, um livro1), de que a TAP foi comprada com o dinheiro da TAP, vem declarar que tal é verdade, mas David Neeleman é um génio e salvou a TAP.
O primeiro é truque usado vezes sem conta pelos ideólogos do neoliberalismo e da política de direita, que usam os «seus» políticos como quem usa fraldas: quando estão cheias, mudam-se. Depois é lavar, deixar passar uns tempos, e já se podem usar novamente. Reparem que nenhum destes escribas refere que houve políticos que alertaram para tudo o que a IGF agora aponta, que alertaram no momento em que os crimes estavam a ser cometidos, a tempo de evitar os ditos e os seus prejuízos, mas que eles, os escribas e os «seus» políticos, fizeram de conta que não ouviram.
Quanto ao segundo truque, JMT não faz mais do que aquilo que fazem todas as autoridades deste país há um ano: fazer de conta que não vêem o crime. É que, há um ano, foi o próprio Humberto Pedrosa quem assumiu, ao vivo e a cores, que recebia os ordenados de administrador através de uma falsa prestação de serviços por razões fiscais. Quem estava a ver o questionamento de Pedrosa por Bruno Dias ter-se-á apercebido do ar atónito do deputado do PSD que nesse momento dirigia os trabalhos da Comissão, que inclusive tentou dar a oportunidade a Humberto Pedrosa de amenizar a sua declaração (e que este não aproveitou). Passou um ano, cerca de um milhão e meio de euros não foi pago à Segurança Social, e o Estado limita-se a fazer relatórios sem actuar contra o crime e os criminosos. Da mesma forma, JMT ignora este pecadilho da gestão privada, como ignora o facto de a IGF confirmar que a TAP privada pagou despesas de Neeleman anteriores à privatização, que a TAP privada pagou milhões a Fernando Pinto e às empresas de Neeleman sem justificação, etc.
«Reparem que nenhum destes escribas refere que houve políticos que alertaram para tudo o que a IGF agora aponta, que alertaram no momento em que os crimes estavam a ser cometidos, a tempo de evitar os ditos e os seus prejuízos, mas que eles, os escribas e os "seus" políticos, fizeram de conta que não ouviram.»
Quanto ao terceiro truque, este também é desmascarado pelo tal livro que o PCP escreveu há um ano, mas vale a pena recuperar a argumentação e confrontá-la com o escrito de JMT. Diz este, basicamente, que Neeleman é um génio da aviação, viu a oportunidade de reforçar as ligações aos EUA com a nova frota, e que essa estratégia fez crescer a TAP. E conclui JMT: «Deus sabe que o senhor Neeleman não é nenhum santo. Mas percebe de aviação. Ele ofereceu à TAP aquilo que ela nunca tinha tido — uma estratégia lucrativa. Isso tem um enorme valor. Os 226 milhões não são pêlo do cão. Pelo contrário: são o pêlo e são o cão. Não saíram do bolso de Neeleman — mas saíram da sua cabeça. O seu a seu dono.»
Que Neeleman percebe de aviação ninguém contesta. Quanto o dar à TAP uma estratégia lucrativa, lamentamos ter que insistir que a TAP SA era e é lucrativa, e que os seus maiores prejuízos até foram durante a gestão privada (ver quadro abaixo).
Mas, mais importante, em 2020 a TAP estoura com a ocorrência da pandemia, e é seu gestor David Neeleman. Que se recusa a capitalizar a sua (!) empresa, pelo que o Estado fica confrontado com três opções: oferecer mil milhões a David Neeleman para salvar uma empresa de David Neeleman; deixar falir a maior empresa nacional; nacionalizar a TAP.
Nos anos anteriores à pandemia a TAP estava a crescer a um ritmo enorme, o maior de sempre. (Aliás, o PCP alertou na altura certa que a TAP estava a inchar mais que a crescer). Mas um crescimento sem qualquer alavancagem, pois David Neeleman não detinha nem tinha colocado na TAP qualquer capital, e um crescimento que era necessário, antes de mais, para sustentar a compra de aviões pela TAP que tinha permitido a David Neeleman comprar a TAP. Que teria acontecido se não tivesse acontecido uma pandemia global? Não sabemos, e até admitimos que a estratégia poderia ter funcionado, pelo menos para ele próprio, pois há prova documental em como se preparava para vender a TAP com um lucro de milhões.
«Quem estava a ver o questionamento de Pedrosa por Bruno Dias ter-se-á apercebido do ar atónito do deputado do PSD que nesse momento dirigia os trabalhos da Comissão, que inclusive tentou dar a oportunidade a Humberto Pedrosa de amenizar a sua declaração (e que este não aproveitou).»
Mas era uma estratégia de alto risco, sem capitais próprios, que vivia da crescente entrada de receitas. E quando as receitas pararam de entrar, o génio pôs-se ao fresco e só não se percebe como ainda levou 55 milhões de prenda (conclusão que a IGF também tira, mas de que se tem falado pouco, talvez porque esta aponta para Pedro Nuno dos Santos).
Ora, como se chama a alguém que compra uma empresa sem investir um tostão, que desenvolve um plano de investimentos sem arriscar um tostão e onde todo o risco está colocado sobre o país e os trabalhadores da TAP? Um plano pensado em criar as condições para poder ficar mais rico sem nada arriscar, excepto uma empresa e os seus postos de trabalho? JMT chama-lhe génio. Eu chamo-lhe especulador, aventureiro ou charlatão. E àqueles que o defenderam e defendem chamo de corruptos (se disso tiraram algum lucro pessoal, e houve quem tirasse) ou lorpas (se simplesmente se deixaram enganar, deslumbrar, pelo mito do empresário genial dos EUA).
Quadro dos resultados líquidos da TAP SA em milhões (Gestão privada 2015/2019)
- 1. TAP: Resistindo às Privatizações, Editorial Avante.
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