Liga-se a televisão e a cascata de encerramentos de urgências, serviços e maternidades entra pelos olhos dentro.
Porque é Inverno. Porque é Verão. Porque há doentes a mais. Porque há médicos a menos. Porque há vírus a mais. Porque há enfermeiros a menos. Porque há profissionais que faltam. Porque há custos pesados. Mas, para o governo dos cofres, o IRC deve baixar porque nunca há lucros exagerados.
A calma é garantida aos crentes, porque o Serviço Nacional de Saúde (SNS) «trabalha em rede». Embora a rede tenha encolhido e ficado com rasgões e buracos, há sempre uma porta, uma janela, um postigo, por onde alguém pode entrar. Em algum lugar. A dezenas de quilómetros. A uma centena de quilómetros. De carro. De ambulância. De helicóptero. Se o INEM não falhar (segundo o Expressso de 11-9-24, em 2023, cerca de 19 000 doentes graves não tiveram o transporte de que necessitavam).
Pode-se telefonar para o SNS24 (empresa privada). Pode-se ver na «net» o sítio mais perto, demasiado longe, para ter o parto. Para ter uma apendicite. Para ter um AVC. Para ter um enfarte. Melhor é não estar doente.
A crise, afirmam, é natural, habitual, sazonal, ondulante, vem com o frio e com o calor, com a chuva ou com a seca. Nada de novo, diz o ministro, a ministra, o locutor, o jornal, a televisão. Todos sabem. Tem anos e anos, como o Adamastor e o Velho do Restelo.
O SNS desmorona-se e os grandes prestadores privados florescem
Muitos anos a dar cabo do SNS e da Constituição. As pessoas habituam-se. É dado como inevitável. Como uma catástrofe natural. Como as alterações climáticas. Há velhos a mais. Há gastos a mais. Há doentes a mais. Há emigrantes a mais. Há pobres a mais. É o peso da modernidade. É a Europa. É o Ocidente. São os «nossos valores». É a guerra da NATO. É a gestão complexa. É o desperdício. É a baixa produtividade da função pública. São os concursos desertos. É o paradigma. É o «novo normal».
Salva-se a «complementaridade» da grande privada. Dos grandes prestadores. Dos grandes accionistas. A única saída. Ajuda quem pode. Quem cresce. Quem diz. O abraço do urso. O outro «SNS». O «Sistema» Nacional de Saúde. As mesmas letras, cheias de engano.
Nas manhas e manhãs da comunicação, a defesa do SNS e da Constituição é um preconceito ideológico da esquerda. Há que ser neutro, como quem manda às urtigas a social-democracia e o «Estado Social Europeu» celebrados na guerra fria.
Dos males da saúde não se discute a responsabilidade estrutural de décadas de políticas de direita. Discute-se a melhor forma de comunicar a bondade e inevitabilidade das suas rupturas. E medidas avulso, salvadoras, balas de prata que deixam tudo pior.
Afinal, um CEO tecnocrático (logo despedido quando mudou o partido no poder) não resolveu a crise. O novo talvez possa organizar melhor o disfarce.
«Pode-se telefonar para o SNS24 (empresa privada). Pode-se ver na "net" o sítio mais perto, demasiado longe, para ter o parto. Para ter uma apendicite. Para ter um AVC. Para ter um enfarte. Melhor é não estar doente.»
Se faltam médicos na urgência, contratam-se mais tarefeiros. Ou mais horas extraordinárias. Ou transferem-se as pequenas urgências dos hospitais públicos para unidades privadas, agora com o nome de «Centros de Atendimento Clínico» (CAC), que já começaram a dar dinheiro aos amigos e a novos boys (ler «Governo anuncia reforço de 65 milhões para Centro de Atendimento Clínico no Porto», Público, 8-9-24; «Homens do PSD da Misericórdia do Porto – em desastre financeiro – recebem "bónus" de Montenegro», Página Um, 4-9-24).
Haverá algum pequeno Serviço de Urgências do SNS (com seis consultórios, uma sala para «pequenos tratamentos», uma sala para colheitas e uma pequena farmácia - JN, 19-8-24) que tenha recebido 65 milhões, assim oferecidos, de mão beijada?
No prefácio do bem documentado livro de Raquel Varela, História do Serviço Nacional de Saúde em Portugal (Ed. Âncora, 2019), o Dr. Jaime Mendes, na altura um invulgar e progressista Presidente da Região Sul da Ordem dos Médicos, escreve:
«O NHS inglês nasceu num processo de pós-guerra e o SNS num processo semelhante pós revolucionário. A onda ordoliberal instalada na Europa, destruidora do Estado Social atingiu também o nosso país e os métodos de privatização do nosso SNS são desesperadamente semelhantes aos que foram utilizados na Grã-Bretanha».
Afinal não se trata de um problema nacional, um triste destino latino, um problema de preguiça, vinho ou má gestão. Tudo foi planeado a um nível mais alto. Na Grã-Bretanha. Na Europa. No Ocidente.
Num outro capítulo do livro, Ursula Huws, cientista social anglo-saxónica, afirma:
«Estamos habituados a pensar no desenvolvimento do capitalismo como um processo voraz: para conseguir satisfazer o apetite insaciável, dedica-se à procura constante de novas fontes de matérias primas e novos mercados (....) mas sobra algum pedacinho de terra onde uma nova geração de exploradores possa desencadear uma nova febre do ouro? (…) Na realidade já está em curso uma febre do ouro. (…) Estamos a falar de quê, ao fim e ao cabo? O relatório (do governo britânico, 2008) chama-lhes "indústrias do sector público".»
Como a Saúde
Um dos artigos também aí citados, «The Plot Against the NHS (o National Health Service inglês)» de Stewart Play e Colin Leys, fala de «como os quatro requisitos fundamentais para a mercantilização de um serviço público foram cumpridos na íntegra: primeiro, dividiram-se os cuidados de saúde em unidades padronizadas, às quais se poderia atribuir um preço. Em segundo lugar, o público em geral foi induzido a recorrer aos serviços mercantilizados; em terceiro, a força de trabalho foi convencida a trabalhar para os accionistas; e por fim o Estado assumiu todos os riscos envolvidos.»
Os governos PS, PSD e CDS das últimas décadas, copiaram métodos e medidas «modernizadoras» da neoliberal Grã-Bretanha de Thatcher e Blair, como o aproveitamento do combate às listas de espera para transferir doentes e dinheiros para o sector privado, a «invenção» de um CEO/Director Executivo para o SNS ou a privatização dos Centros de Saúde que agora se está a iniciar com as USF tipo C (que o ministro Pizarro do PS tirou do congelador, e a actual ministra reaqueceu para pôr à venda).
Lá, como cá, também se elogiava o valor e pioneirismo do NHS (National Health Service) enquanto, com luvas ou à bruta, o estrangulavam.
Como diz a canção do poeta Sérgio Godinho, Lá Isso É, (com a palavra «fascismo» substituída num esforço de contextualização):
«A Grande Privada é uma minhoca
Que se infiltra na maçã
Ou vem com botas cardadas
Ou com pezinhos de lã».
Como a minhoca na maçã, a política dos governos de direita, ou do «centro-direita», e do «centro-esquerda», de mansinho ou com botas cardadas, foi esburacando, mordendo, mastigando, cortando o SNS, deixando-o como os restos de uma maçã roída.
Esmagaram-lhe o financiamento, mudaram os nomes de hospitais públicos para se parecerem com os privados, tiraram-lhes a gestão democrática, acabaram com o vínculo à função pública, apagaram as Carreiras Médicas, deram cabo da Dedicação Exclusiva, destruíram equipas e trabalho multidisciplinar, «exteriorizaram» (para o privado) listas de espera, consultas, cirurgias e urgências, contrataram tarefeiros à hora, inocularam «empresas/cooperativas» nos Serviços Hospitalares (CRI) e nos Centros de Saúde – USF A,B,C – (agradando à troika e ao PRR), dividiram investimentos e contratações (como na «municipalização»).
Pagaram cada vez pior a médicos e outros profissionais, desrespeitaram a hierarquia do conhecimento e a avaliação interpares, impuseram a ditadura de números e estatísticas sem sentido, soterraram a autonomia técnica com doses maciças de burocracia, relegaram, para o campo da hipocrisia propagandística, a qualidade assistencial, «finalmente centrada no doente».
Com tudo isso, conseguiram pelo menos duas das condições apontadas por Stewart Play e Colin Leys, postas em prática no processo de privatização do NHS na Grã-Bretanha: obter a aceitação (relutante) da força de trabalho, cansada, mas já habituada à filosofia de mercantilização e do «lucro» instilada no serviço público; e desestabilizar a situação das chefias clínicas e quadros mais experientes. Assim se fomentou a sua fuga para o sector privado. E os fechos de urgências, serviços e maternidades.
«Muitos anos a dar cabo do SNS e da Constituição. As pessoas habituam-se. É dado como inevitável. Como uma catástrofe natural. Como as alterações climáticas. Há velhos a mais. Há gastos a mais. Há doentes a mais. Há emigrantes a mais. Há pobres a mais. É o peso da modernidade. É a Europa. É o Ocidente. São os "nossos valores".»
Nas primeiras décadas da sua existência, ainda sob o impulso da Revolução dos Cravos, o SNS português tinha-se estruturado como organização dominante com hospitais centrais, distritais e concelhios e uma rede de centros de saúde e extensões de proximidade, como um exército hierarquizado e benigno que progressivamente ocupou todo o território, prestando cada vez mais e melhores cuidados de saúde aos cidadãos, sem olhar à sua carteira.
O SNS, então ainda com gestão democrática centrada em objectivos clínicos, apesar das carências e atrasos, foi atraindo cada vez mais profissionais, que aí centravam o essencial da sua formação e actividade clínicas, progredindo técnica e cientificamente à medida que se observava um maior investimento em edifícios, recursos humanos, material e equipamento, facilitando a transição da medicina individual e liberal da primeira metade do século passado, para uma prática moderna, multidisciplinar e mais diferenciada, que proporcionou o rápido atingimento de metas nunca antes sequer sonhadas – em 2001, o SNS português foi considerado, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o 12.º do mundo, à frente de países mais desenvolvidos, como a Grã-Bretanha, a Alemanha ou os EUA.
São essas primeiras décadas de crescimento que deixam saudades aos profissionais que nele ainda trabalham ou trabalharam. Foi isso que os partidos no poder (PS,PSD e CDS) tiveram que desmontar, dando primazia aos interesses dos grandes prestadores privados que foram criando o «mercado» e o ambiente propício ao «negócio», com o apoio de um verdadeiro pacto de regime, que foi forjando o caminho para o desastre.
É neste momento difícil que se comemoram os quarenta e cinco anos do SNS. Não do «Sistema». Do verdadeiro, do «nosso» Serviço Nacional de Saúde. Que merece elogios sem hipocrisias nem lágrimas.
«Em 2001, o SNS português foi considerado, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o 12.º do mundo, à frente de países mais desenvolvidos, como a Grã-Bretanha, a Alemanha ou os EUA.»
Se os esforços e lamentos que se ouvem das direitas têm a sinceridade de quem se queixa de ser órfão depois de matar os pais, a propaganda da sua morte é também, em grande parte, exagerada.
Porque muitas unidades e serviços do SNS funcionam bem. Muito bem mesmo. Melhor do que parece e aparece. Assistindo milhões. Operando milhares. Salvando muita gente. Fazendo o mais complexo e difícil. Na pandemia. Todos os dias. Todas as noites. De Inverno. De Verão. Contra ventos e marés. Resistindo.
Num inquérito promovido pela Ordem dos Médicos em 2021, a que responderam 6755 médicos, dos 67% que trabalhavam no SNS, quase metade dos quais (43%), estavam em regime de «dedicação exclusiva», a que puderam aderir antes de 2009. Destes, uma percentagem significativa (53%) rejeita a hipótese de no futuro vir a trabalhar no sector privado, e os que puseram como provável essa hipótese (21%), apontam a «remuneração», como primeira razão para o fazerem.
De resto, a baixa remuneração permanece, em todas as outras situações profissionais dos médicos, entre as primeiras causas de abandono do SNS («A Carreira Médica e as condições de trabalho no SNS versus fora do SNS – Inquérito aos médicos», OM, Agosto, 2021).
Hoje, tudo está pior
Como resposta aos fechos de serviços em todas as frentes, devidos à saída de milhares de médicos e outros profissionais do SNS, os governos propuseram prémios e préminhos cheios de «mérito» e «desempenho», mas nunca aumentam os salários de forma a repor a perda de poder de compra (superior a 20% na última década, no caso dos médicos) também afectada com a subida da inflação.
O SNS faz anos. Um número redondo ou pelo menos de adulto de meia-idade. 45 anos. Apesar dos maltratos e da vida difícil, quase meio século de indiscutíveis serviços prestados aos cidadãos portugueses.
Hoje, mais do que nunca, é preciso defendê-lo dos que o querem salvar com «planos de emergência» e juras de amor, mas sem aumento de salários e direitos, alargando as brechas já abertas, ao arrepio da Constituição.
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