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O Anexo 26 e a proposta fantasma da Lufthansa – mais um mito que subsiste

Não houve proposta da Lufthansa. Não houve avaliação independente da companhia, que a avaliou em mil milhões de euros. Mas, se tivesse havido, alterava a realidade contabilística da empresa? Claro que não. É tudo ilusionismo.

Créditos / Bomdia.eu

Ilusionismo que subsiste ou em que se insiste. Desta vez é Nuno Vinha, director-adjunto do Diário de Notícias1 que ressuscita o tema «em Fevereiro de 2020, a gigante alemã Lufthansa fez uma oferta por parte do capital da TAP que valorizava a companhia em cerca de 900 milhões». Acontece que esta proposta nunca existiu, a não ser como mais uma fraude de David Neeleman e do PSD, que a ela se têm referido sistematicamente.

Quando instado a enviar para a Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP os documentos que provassem essa oferta, David Neeleman caiu no ridículo,  pois os documentos foram tornados públicos, como Anexo 26 às respostas de Neeleman, no site do Parlamento2. O que Neeleman enviou foi um estudo mal feito, mas bem amanhado, sem qualquer sustentabilidade, defensivamente intitulado «Estudo Preliminar», realizado por uma filial do Deutsche Bank com base em dados fornecidos exclusivamente pela administração da TAP e destinado exclusiva e expressamente à administração da TAP. Para se ter uma ideia do rigor usado, o estudo opera com base na «projecção» – em Junho de 2019 – de um resultado líquido positivo em 2019 de 33 milhões de euros, quando esse resultado seria um prejuízo de 96 milhões de euros!

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A TAP, o pêlo e o cão

Ora, como se chama a alguém que compra uma empresa sem investir um tostão, que desenvolve um plano de investimentos sem arriscar um tostão e onde todo o risco está colocado sobre o país e os trabalhadores da TAP?

David Neeleman (E) e Humberto Pedrosa (D) riem à saída do edifício da Parpública, após a empresa gestora de participações do Estado lhes ter vendido 61% do capital da TAP. Lisboa, 13 de Novembro de 2015
CréditosManuel de Almeida / Agência Lusa

Dos escribas ao serviço da promoção do neoliberalismo, João Miguel Tavares (JMT) é seguramente um dos mais capazes. Perante um esmagador relatório da Inspecção-Geral de Finanças (IGF), ele vem a terreno para salvar o que (lhe) interessa: as privatizações e o mito do milagroso gestor privado.

Usa para tal três truques: amnistia todos os crimes cometidos pelos governantes do PSD/CDS/PS, com base na tese de que todos os políticos são maus (que é a melhor forma de inocentar os políticos que ele apoia); ignora uma das principais conclusões da IGF, a de que a TAP, sob gestão privada sublinho, cometeu crimes graves em benefício directo dos seus administradores privados; e perante o facto novamente demonstrado publicamente (e sobre o qual o PCP já escreveu, literalmente, um livro1), de que a TAP foi comprada com o dinheiro da TAP, vem declarar que tal é verdade, mas David Neeleman é um génio e salvou a TAP.

O primeiro é truque usado vezes sem conta pelos ideólogos do neoliberalismo e da política de direita, que usam os «seus» políticos como quem usa fraldas: quando estão cheias, mudam-se. Depois é lavar, deixar passar uns tempos, e já se podem usar novamente. Reparem que nenhum destes escribas refere que houve políticos que alertaram para tudo o que a IGF agora aponta, que alertaram no momento em que os crimes estavam a ser cometidos, a tempo de evitar os ditos e os seus prejuízos, mas que eles, os escribas e os «seus» políticos, fizeram de conta que não ouviram.

Quanto ao segundo truque, JMT não faz mais do que aquilo que fazem todas as autoridades deste país há um ano: fazer de conta que não vêem o crime. É que, há um ano, foi o próprio Humberto Pedrosa quem assumiu, ao vivo e a cores, que recebia os ordenados de administrador através de uma falsa prestação de serviços por razões fiscais. Quem estava a ver o questionamento de Pedrosa por Bruno Dias ter-se-á apercebido do ar atónito do deputado do PSD que nesse momento dirigia os trabalhos da Comissão, que inclusive tentou dar a oportunidade a Humberto Pedrosa de amenizar a sua declaração (e que este não aproveitou). Passou um ano, cerca de um milhão e meio de euros não foi pago à Segurança Social, e o Estado limita-se a fazer relatórios sem actuar contra o crime e os criminosos. Da mesma forma, JMT ignora este pecadilho da gestão privada, como ignora o facto de a IGF confirmar que a TAP privada pagou despesas de Neeleman anteriores à privatização, que a TAP privada pagou milhões a Fernando Pinto e às empresas de Neeleman sem justificação, etc.

«Reparem que nenhum destes escribas refere que houve políticos que alertaram para tudo o que a IGF agora aponta, que alertaram no momento em que os crimes estavam a ser cometidos, a tempo de evitar os ditos e os seus prejuízos, mas que eles, os escribas e os "seus" políticos, fizeram de conta que não ouviram.»

Quanto ao terceiro truque, este também é desmascarado pelo tal livro que o PCP escreveu há um ano, mas vale a pena recuperar a argumentação e confrontá-la com o escrito de JMT. Diz este, basicamente, que Neeleman é um génio da aviação, viu a oportunidade de reforçar as ligações aos EUA com a nova frota, e que essa estratégia fez crescer a TAP. E conclui JMT: «Deus sabe que o senhor Neeleman não é nenhum santo. Mas percebe de aviação. Ele ofereceu à TAP aquilo que ela nunca tinha tido — uma estratégia lucrativa. Isso tem um enorme valor. Os 226 milhões não são pêlo do cão. Pelo contrário: são o pêlo e são o cão. Não saíram do bolso de Neeleman — mas saíram da sua cabeça. O seu a seu dono.»

Que Neeleman percebe de aviação ninguém contesta. Quanto o dar à TAP uma estratégia lucrativa, lamentamos ter que insistir que a TAP SA era e é lucrativa, e que os seus maiores prejuízos até foram durante a gestão privada (ver quadro abaixo).

Mas, mais importante, em 2020 a TAP estoura com a ocorrência da pandemia, e é seu gestor David Neeleman. Que se recusa a capitalizar a sua (!) empresa, pelo que o Estado fica confrontado com três opções: oferecer mil milhões a David Neeleman para salvar uma empresa de David Neeleman; deixar falir a maior empresa nacional; nacionalizar a TAP.

Nos anos anteriores à pandemia a TAP estava a crescer a um ritmo enorme, o maior de sempre. (Aliás, o PCP alertou na altura certa que a TAP estava a inchar mais que a crescer). Mas um crescimento sem qualquer alavancagem, pois David Neeleman não detinha nem tinha colocado na TAP qualquer capital, e um crescimento que era necessário, antes de mais, para sustentar a compra de aviões pela TAP que tinha permitido a David Neeleman comprar a TAP. Que teria acontecido se não tivesse acontecido uma pandemia global? Não sabemos, e até admitimos que a estratégia poderia ter funcionado, pelo menos para ele próprio, pois há prova documental em como se preparava para vender a TAP com um lucro de milhões.

«Quem estava a ver o questionamento de Pedrosa por Bruno Dias ter-se-á apercebido do ar atónito do deputado do PSD que nesse momento dirigia os trabalhos da Comissão, que inclusive tentou dar a oportunidade a Humberto Pedrosa de amenizar a sua declaração (e que este não aproveitou).»

Mas era uma estratégia de alto risco, sem capitais próprios, que vivia da crescente entrada de receitas. E quando as receitas pararam de entrar, o génio pôs-se ao fresco e só não se percebe como ainda levou 55 milhões de prenda (conclusão que a IGF também tira, mas de que se tem falado pouco, talvez porque esta aponta para Pedro Nuno dos Santos).

Ora, como se chama a alguém que compra uma empresa sem investir um tostão, que desenvolve um plano de investimentos sem arriscar um tostão e onde todo o risco está colocado sobre o país e os trabalhadores da TAP? Um plano pensado em criar as condições para poder ficar mais rico sem nada arriscar, excepto uma empresa e os seus postos de trabalho? JMT chama-lhe génio. Eu chamo-lhe especulador, aventureiro ou charlatão. E àqueles que o defenderam e defendem chamo de corruptos (se disso tiraram algum lucro pessoal, e houve quem tirasse) ou lorpas (se simplesmente se deixaram enganar, deslumbrar, pelo mito do empresário genial dos EUA).

Quadro dos resultados líquidos da TAP SA em milhões (Gestão privada 2015/2019)

  • 1. TAP: Resistindo às Privatizações, Editorial Avante.
Tipo de Artigo: 
Opinião
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Este estudo, um daqueles onde a TAP gastou 400 milhões de euros, de acordo com a IGF, é expressamente confidencial, com o Deutsche Bank a afastar-se expressamente de qualquer responsabilidade sobre ele, pois operava apenas com números (hoje visivelmente falsos) fornecidos pela administração da TAP privada. Para facilitar a compreensão do mecanismo da fraude, é como se, preparando a venda do meu apartamento, eu solicitasse a uma consultora um estudo sobre quanto valeria no mercado um apartamento de 700 metros com vista para o mar (em vez dos 70 metros com vista para a casa do Bubas, onde vivo), sendo-me fornecido um belo documento em inglês, cheio de quadros, que eu poderia usar para dizer que a minha casa vale cinco milhões de euros (e em letra pequena, a consultora diria que eu fornecera as medidas e localização da casa, e que ela não se responsabilizava pela validade da informação). Claro que depois teria ainda de arranjar quem acreditasse na afirmação, que não lesse o estudo e se limitasse a olhar para ele reverentemente, ou que aceitasse dar credibilidade à informação com base em testemunhos como os do artigo referido, que assumem como facto uma ficção criada no seio de uma fraude. Neste caso, David Neeleman só precisou de um conjunto de pessoas inteligentes que, por razões políticas e ideológicas, aceitou fingir ser enganada e contribuir para o engano de outros.   

Associada a esta «proposta» de compra está a ideia de que a «A TAP valia mil milhões de euros em 2019», que é igualmente suportada pelo autor da ideia – David Neeleman – no estudo atrás referido. 

Mas, para se ter uma ideia da validade desse valor, deveria bastar olhar para a evolução dos capitais próprios (a diferença entre o activo e o passivo) da TAP, entre 31 de Dezembro de 2015 e de 2019. Ela evoluiu de menos 530 milhões para menos 692 milhões, e não, como tenta induzir David Neeleman, de menos 512 para 1000 milhões positivos. Piorou em vez da melhoria radical que tanto David Neeleman como o PSD fingem ter acontecido. 

Leiam os Relatórios e Contas, são públicos. Em Dezembro de 2019, ANTES DA PANDEMIA, a gestão privada da TAP tinha agravado a descapitalização da empresa em 162 milhões de euros. O resto é ilusionismo.

Não houve proposta da Lufthansa. Não houve avaliação independente da companhia que a avaliou em mil milhões de euros. Mas se tivesse havido alterava a realidade contabilística da empresa? Claro que não. É tudo ilusionismo.

«Para um capitalista, a TAP vale a capacidade de lhe gerar lucros. Para o povo português, o valor é outro.»

Repito esta ideia fundamental: alguns foram enganados pelo ilusionista, outros usam as suas ilusões para tentar enganar o povo português. O ilusionista queria ganhar dinheiro, e ganhou. Os segundos, querem esconder do povo português este simples facto: no final de 2015, um grupo capitalista pagou 10 milhões de euros por 61% da TAP. Geriu a TAP durante quase cinco anos, até Setembro de 2020. Nessa altura, a empresa foi reestruturada, e tinha, além do buraco atribuído pela Comissão Europeia à Covid (640,5 milhões de euros) outras necessidades de capitalização superiores a 1,5 mil milhões de euros3. Um desastre!

Uma última nota: para o povo português, a TAP vale muito mais que o seu balanço. Neste artigo desmonta-se as fraudes sobre o valor da TAP para UM CAPITALISTA. Porque, para um capitalista, a TAP vale a capacidade de lhe gerar lucros. Para o povo português, o valor é outro, e as unidades de medida outras. Um exemplo: os salários e a Segurança Social pagos em Portugal são apenas um custo para o capitalista, mas são também uma receita para a restante economia nacional. Outro exemplo: que o vinho vendido a bordo da TAP seja português ou francês é indiferente para um capitalista (a não ser que detenha igualmente a empresa que fabrica aquele vinho), mas não é indiferente para a economia portuguesa. Um último exemplo: não tem qualquer valor contabilístico apurar se o país possui a capacidade de assegurar as suas rotas estratégicas, nem o facto de assim o país estar muito menos sujeito a ser chantageado «pelo mercado» a pagar um valor exorbitante pela satisfação dessa necessidade estratégica.

  • 1. Edição de 16 de Setembro de 2024.
  • 2. A confidencialidade deste tipo de operações destina-se exactamente a dar margem de manobra aos seus intervenientes para acordarem entre si a versão que vão tornar pública. É por isso que são confidenciais.
  • 3. Recordo os mais atentos que o total de apoios atribuídos à TAP na reestruturação (os já famosos 3,2 mil milhões) incluem quase mil milhões que ficam como capitalização da empresa (grosso modo, 3,2 = 0,64 + 1,55 + 1).

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