Os últimos tempos trouxeram mais um factor de desestabilização da TAP, mais uma vez com origem na bela e brilhante gestão privada da TAP privatizada. O diferendo com a Azul.
Vamos começar pelo óbvio: a Azul tem razão em estar preocupada. Tem uma dívida da TAP SGPS, os últimos dois governos têm claramente esvaziado e anunciado o maior esvaziar da TAP SGPS (desde logo da TAP SA, que era o grosso da TAP SGPS, mas depois da Portugália, da SPDH e da Cateringpor), sendo evidente que na SGPS estão a ficar as dívidas e pode não ficar qualquer do património que as poderia garantir. Conhecendo o que os capitalistas fazem muito regularmente, a Azul teme uma insolvência fraudulenta da TAP SGPS, para limpar os passivos que lá fiquem depositados. E tem razão em temer, até porque o anterior governo já fez uma insolvência totalmente artificial na SPDH.
Mas acaba aqui a razão da Azul. Não só porque essas dúvidas legítimas não justificam ameaças e chantagens públicas, mas principalmente porque há um historial desta dívida e da relação entre a TAP e a Azul que importa ter presente.
«Conhecendo o que os capitalistas fazem muito regularmente, a Azul teme uma insolvência fraudulenta da TAP SGPS, para limpar os passivos que lá fiquem depositados. E tem razão em temer, até porque o anterior governo já fez uma insolvência totalmente artificial na SPDH.»
A começar pela formação desta dívida. Esta dívida começa a ser formada no momento da entrada de David Neeleman na TAP. Na rebuscada arquitectura montada para comprar a TAP fugindo à lei e aos objectivos formais da privatização, a entrada da Azul (então propriedade de David Neeleman) com 90 milhões de euros convertíveis em capital social tinha dois objectivos imediatos:
– manter a empresa, formal e minimamente, dentro das regras da UE, pois o capital aquando da privatização era detido maioritariamente pela soma do capital social detido entre Humberto Pedrosa e o Estado, portanto nacional, mas na realidade, os 90 milhões convertíveis esperavam apenas a alteração da nacionalidade de David Neeleman para se transformarem em capital social e lhe entregarem formalmente o controlo total da empresa. Recordamos que David Neeleman viria a adquirir a nacionalidade cipriota, e que a UE proíbe que uma transportadora aérea da União Europeia seja controlada por um nacional de um Estado não membro da UE;
– continuar o processo de capitalização da TAP (entraram 90 milhões da Azul e 30 milhões da Parpública) sem que David Neeleman nele colocasse um cêntimo (o resto veio da Airbus e está a ser pago pela TAP, como hoje toda a gente já sabe).
Com a pandemia, as acções da TAP passaram a valer zero, e David Neeleman só queria o controlo da empresa se o Estado fizesse o que propuseram então a IL e o PSD – se lhe oferecessem mil milhões para ele capitalizar a TAP. Quando, num raro momento de lucidez, o governo PS se recusou a esse caminho, David Neeleman já não queria converter o empréstimo em acções que nada valiam, e conseguiu duas coisas espantosas (a lucidez do governo durou pouco tempo): conseguiu ser indemnizado para sair do capital da empresa (tendo recebido 55 milhões por um lote de acções que à data valia zero euros) e conseguiu que as obrigações convertíveis da Azul passassem a assumir um valor de empréstimo obrigacionista, e para mais com uma taxa de juro apetitosa. Com isso evitou degradar o valor da Azul, que controla apesar de deter menos de 5% dos direitos económicos.
Mas há mais. A taxa de juro colocada nas obrigações é mais que especulativa, é pura usura. Para termos uma ideia, em 2026, quando tiver que amortizar a dívida, a TAP SGPS será obrigada a pagar algo como 189 milhões de euros, algo como 110% de juro!! Ora, durante este período a taxa de juro dos depósitos a prazo foi sempre inferior a 1% até Março de 2023 e nunca ultrapassou os 3,08%. E a inflação acumulada foi de 16,96%. Destes valores para os 110% vai uma valorização de cerca de 90% – usura!
«Com a pandemia, as acções da TAP passaram a valer zero, e David Neeleman só queria o controlo da empresa se o Estado fizesse o que propuseram então a IL e o PSD – se lhe oferecessem mil milhões para ele capitalizar a TAP.»
O facto de à data deste contrato de usura David Neeleman controlar os dois lados do negócio torna-o mais que suspeito. E torna ilegítimo que se venha agora exigir o pagamento do empréstimo e do juro de usura.
Mas sejamos claros. O Governo português não consegue exigir o correcto – um Acordo entre a TAP e a Azul para que o empréstimo obrigacionista seja pago, mas sem os juros usurários – porque não quer assumir publicamente o reconhecimento de mais uma patifaria herdada da gestão privada e do processo de privatização de 2015. E tem preferido meter a questão debaixo do tapete, desestabilizando a TAP. E não consegue fazer o correcto porque assumir toda a herança da privatização de 2015 iria dificultar o processo em curso de tentativa de convencimento do povo português da necessidade de vender a TAP. E como acontece há demasiados anos, esta é a única prioridade do Governo para a TAP: vendê-la.
Intencionalmente, deixámos de fora deste artigo um conjunto de outras matérias da relação da Azul com a TAP onde claramente a TAP foi usada para apoiar a Azul, desde os pequenos aviões ATR que vieram fazer a ponte aérea, aos dois aviões que foram alugados à Azul para fazer a manutenção e modernização à custa da TAP e depois devolvidos já modernizados, à relação da Azul com a Manutenção Brasil, e mais um conjunto de questões que já deveriam ter sido investigadas, mas nunca o foram e provavelmente nunca o serão, porque mais uma vez tal implica analisar ao detalhe o período em que a TAP esteve privatizada.
Mas seja como for, olhando para o futuro, que é o mais importante, o que é de interesse da TAP é estabelecer uma relação com a Azul mutuamente vantajosa e acabar com este diferendo. E o Governo já deveria ter feito algo para ajudar a resolver a questão.
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