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Encerramento de linhas para obras: da Linha da Beira Alta à do Alentejo

Até há vinte anos atrás, obras como a renovação de via da Linha de Cascais e quadruplicações das Linhas de Sintra e de Cintura, com intenso tráfego, foram feitas mantendo o serviço de passageiros. 

Desde há quatro anos que a população da Lapa do Lobo é servida apenas por dois comboios
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O país parece que já se esqueceu que obras importantes da Rede Ferroviária Nacional foram realizadas sem encerramento de linhas, como por exemplo a quadruplicação da Linha de Sintra e a modernização e electrificação da Linha da Beira Alta, ambas na década de 90, a quadruplicação da Linha de Cintura desde Roma-Areeiro com ligação à Ponte 25 de Abril e prolongamento até ao Pinhal Novo, concluída para a Expo98, e a modernização com electrificação dos quase 350 km da ligação Lisboa-Faro concluída para o Euro 2004, mais a electrificação até ao Porto de Sines. Tudo obras que foram cumpridas, no essencial, com uma taxa de realização de obra quase mítica se comparada com a do Ferrovia 2020, lançado com previsão de conclusão em 2021, e agora no final de 2024 ainda se arrasta apenas com 15% de obra concluída, e sem qualquer obra terminada em 2023 e em 2024.

Então como explicar que a modernização que se iniciou em 19 de Abril de 2022 do troço Pampilhosa – Guarda tenha «exigido» o inicialmente anunciado encerramento da Linha da Beira Alta por nove meses (mas a linha continua encerrada) e que, no caso da Linha do Alentejo, o Governo e a IP estejam a apontar para uma previsão inicial de encerramento durante 21 meses para os meros 64 km de modernização com eletrificação entre Casa Branca e Beja?

Para perceber este contraste, é útil aprofundar a reflexão sobre as consequências da desarticulação e mesmo desmembramento do sistema ferroviário nacional impostas pela política neoliberal da UE, quando o país se depara com obras muito mais simples a serem realizadas com encerramento de linhas e ainda assim com escandalosos atrasos, enormes indemnizações e uma total ausência de planeamento para a continuidade do uso e preservação da capacidade instalada.

Portugal é um país de pequena dimensão localizado na extremidade do continente e da Península Ibérica para o que a escala necessária do sistema ferroviário exige opções consistentes em que a existência de uma empresa unificada e pública, de contas de infraestrutura e operação individualizadas, com o âmbito da anterior CP – Caminhos de Ferro Portugueses não pode ser ignorada e os resultados práticos da opção contrária, de desmembramento, levam a que esteja cada vez mais presente.

«Como explicar que a modernização que se iniciou em 19 de Abril de 2022 do troço Pampilhosa – Guarda tenha «exigido» o inicialmente anunciado encerramento da Linha da Beira Alta por nove meses (mas a linha continua encerrada) e que, no caso da Linha do Alentejo, o Governo e a IP estejam a apontar para uma previsão inicial de encerramento durante 21 meses para os meros 64 km de modernização com eletrificação entre Casa Branca e Beja?»

Na sequência da asfixia a que foi submetida desde a década de oitenta, a CP – Caminhos de Ferro Portugueses veio a ser objeto da primeira grande fratura neoliberal com a criação da REFER em 1997 (Directiva Comunitária 440/91), consumando a separação da infraestrutura e da operação. E assim até o ministério que era dos transportes veio a mudar para ministério das infraestruturas, ou seja com a componente muito mais onerosa, a infraestrutura, a cargo dos contribuintes, para que possa ser lucrativa a operação privada nas linhas mais rentáveis.

As obras listadas no início deste texto, são exemplos da consistência de uma capacidade de realização de infraestrutura ferroviária notável, beneficiando de facto da dimensão, escala e transmissão de saber geracional, e mesmo cultura ferroviária, só possível com uma estrutura empresarial unificada, como um dos pilares de desenvolvimento soberano, a CP – Caminhos de Ferro Portugueses e não apenas a CP – Comboios de Portugal a que foi reduzida pelo neoliberalismo, essa grande causa visível da redução de capacidades que está aí à vista de todos.

A propósito, voltemos à Linha da Beira Alta. A modernização com electrificação realizada na década de noventa pela CP – Caminhos de Ferro Portugueses consistiu num projecto integrado, em que ao mesmo tempo se realizou a duplicação de via entre Pampilhosa e Luso, e foram criados os desvios (Muxagata e Noémi) que permitiram um considerável aumento da capacidade da linha, e uma melhor gestão dos cruzamentos de comboios, variantes em Nelas e Cerdeira, renovação da via, reabilitação das gares, construção de passagens desniveladas, automatização e eliminação de mais de cem passagens de nível, intervenções em pontes, viadutos e túneis, e instalação de nova sinalização e do sistema de controlo automático de velocidade.

A obra foi financiada com empréstimos do BEI, fundos comunitários FEDER e Orçamento do Estado, através do PIDDAC.

Os materiais então aplicados na maior parte da extensão da renovação de via entre Pampilhosa e Guarda foram os mais modernos, os que continuam a ser aplicados nas obras ferroviárias em curso e os que irão ser aplicados na linha de alta velocidade entre Porto-Lisboa, ou seja, travessa de betão monobloco, carris de 60 kg/m, fixações Vossloh, balastro granítico e aparelhos de mudança de via tipo Cogifer.

Assim, relativamente à modernização que se iniciou em 19 de Abril de 2022 algumas questões se colocam. 

Desde logo qual é o grande objetivo estratégico das obras em curso, para além da instalação de um novo sistema de sinalização, que nem exigiria encerramento da linha?

Porque razão terá sido levantado todo o armamento de via moderno ali colocado há menos de 30 anos, nos 150 km de linha até à Guarda? Para tratar a subjacente camada de substrutura de via por razões geotécnicas? Mas dada a matriz rochosa da zona de montanha atravessada, as condições geotécnicas são em regra de qualidade razoável, salvo em casos particulares objeto de tratamento circunscrito. E esses materiais de via levantados vão ser reaplicados? É desejável que sim, mas então volta a pergunta, porque razão terão sido levantados? Foi tida em conta a importância da consolidação da plataforma de via devida a mais de cem anos de compactação pela passagem de comboios?

E ainda, sabendo-se que em linhas de montanha, como é o caso, são muito reduzidas as condições de melhoria do traçado com variantes, sendo assim de entender que nem se preveja nas obras em curso qualquer aumento de velocidade no itinerário Pampilhosa-Guarda, que outras razões haverá de facto para que as obras se arrastem para mais do triplo do tempo previsto?

Por outro lado, se nas obras realizadas sem encerramento de tráfego à circulação durante o dia, o trabalho é efetuado de noite e em período mais alargado aos fins de semana, (como as obras referidas no primeiro parágrafo), porque razão na obra em curso na Linha da Beira Alta, encerrada totalmente ao tráfego, o período de trabalho é apenas diurno e apenas em dias semanais?

Na Linha do Alentejo com a previsão de encerramento durante 21 meses para os 64 km de modernização com eletrificação entre Casa Branca e Beja qual é o período efectivo de trabalho contratado pela IP?

É que o aumento da velocidade da linha para os 200 Km/h implica intervenção na plataforma de via, a camada geotécnica de subestrutura, atividade que determinará a futura qualidade geométrica da linha, requerendo tempo e rigor técnico.

Apesar disso, os 21 meses de encerramento da Linha do Alentejo são um prazo já equivalente aos 31 meses da Linha da Beira Alta, tendo em conta as respectivas extensões de intervenção. Serão portanto 21 meses conservativos para que não se repita o caricato adiamento sucessivo da conclusão das obras entre Pampilhosa e Guarda.  

Mas se o período de trabalho contratado for apenas durante os períodos diários semanais, significa que se está perante uma espécie de cativação do Governo para arrastamento propositado das obras da Linha do Alentejo, pois se for o caso, com dois turnos de trabalho, diurno e noturno, e em fins de semana, o tempo de encerramento da linha poderia ser reduzido para metade.

Significa isto que, nas mesmas condições, os 52 km entre Beja e Ourique poderiam também estar modernizados e eletrificados no fim do mesmo período de 21 meses agora anunciados. Avance-se com o projeto de execução!

O essencial do que está em causa para refletir, resistir e inverter, é a forma velada como a liberalização no setor ferroviário imposta pela UE e aqui concretizada pela política de direita de PS, PSD, CDS e afins, ao invés do adoptado na grande maioria dos maiores e mais desenvolvidos países neste modo de transporte e também ao invés do modelo empresarial, essencialmente público, em que claramente se deram os maiores e mais recentes saltos tecnológicos no caminho de ferro. O liberalismo no caminho de ferro é uma opção ultra minoritária no mundo e que está a atrasar Portugal e a União Europeia.

Os fundos comunitários olearam a política de direita na imposição da liberalização, que retirando ao país o necessário planeamento estratégico neste setor multidisciplinar e de monopólio natural, acenando com aparentes vantagens de um mercado de transporte privatizado, em que o tal custo elevado das infraestruras, fica do lado do investimento público.

Nesse processo de oleamento, fundos comunitários e decisões de investimento são muitas vezes concentrados no tempo em pacotes de financiamento que impõem assim decisões pseudo expeditas, em que a perda de capacidades de projeto, fiscalização e construção, devido à própria liberalização, é aparentemente causa e motivo para o ‘pragmatismo’ de decisões com PPP e assim apostando mais na liberalização, impondo ainda mais retrocesso nas capacidades já perdidas em que as tais obras de há vinte e trinta anos executadas sem encerramento de linhas mesmo naquelas de tráfego intenso como na quadruplicação da Linha de Sintra, ou mesmo da renovação da Linha de Cascais há quarenta anos, são de facto obras hoje quase lendárias.

«Não passam despercebidos fracassos da imposição do liberalismo, quando a opção da UE revela tibieza pela relativa adesão do grande capital à operação de transporte ferroviário, dada a evidência de afinal serem as empresas públicas chamadas a protagonizar a liberalização. É quase uma quadratura do círculo ou então a dura lei do mais forte na UE.»

Podemos concentrar-nos nos enormes atrasos de todas as obras em curso, podemos concentrar-nos nas decisões de encerramento das linhas para a execução das obras sabendo-se que desde os primórdios do caminho de ferro muitas das intervenções têm sido efetuadas com os comboios em circulação, podemos concentrar-nos na perda de capacidades de projeto, fiscalização e construção, na falta de trabalhadores, na falta de transferência geracional do saber fazer, no valor das empreitadas colocadas a concurso, nos concursos que ficam desertos, nas adjudicações pelo valor mais baixo segundo o CCP e sem refletir a qualidade das propostas, nos técnicos desviados para a vertente jurídica na aplicação do CCP na gestão dos contratos das empreitadas, etc., etc.

Podemos concentrar-nos em tudo isto e muito mais, mas há um elefante na sala: a liberalização no setor ferroviário!

Só quando assumida a necessidade de conter e reverter a liberalização, em primeiro lugar pelos trabalhadores, que se confrontam com a inexistência de condições para realizarem a sua atividade com meios minimamente adequados, a progressão da degradação evidenciada desde há cerca de vinte anos poderá ser ultrapassada e dar-se início à reunificação da estrutura empresarial ferroviária nacional.

É que não passam despercebidos fracassos da imposição do liberalismo, quando a opção da UE revela tibieza pela relativa adesão do grande capital à operação de transporte ferroviário, dada a evidência de afinal serem as empresas públicas chamadas a protagonizar a liberalização. É quase uma quadratura do círculo ou então a dura lei do mais forte na UE.

Vejamos então que em alternativa ao apregoado protagonismo do capital privado, afinal são as empresas públicas ferroviárias de Alemanha, França e Itália - que até optaram por manter infraestruturas e operação unidas por holding - que lideram a operação neoliberal na Península Ibérica. Mas note-se, que em Portugal e Espanha foi concretizada a separação total da infraestrutura e da operação, sem holding. Na Europa e no mundo apenas em mais três países se concretizou este modelo, na Bélgica, Holanda e Suécia. Uma imensa minoria num laboratório de experiências à custa dos povos e do seu bem estar.

A pública DB alemã participou no capital da Fertagus, através da Barraqueiro. A DB opera também no transporte de mercadorias em Espanha com várias empresas,  designadamente a Transfesa. A pública SNCF francesa faz aqui pela vida com a Captrain, no transporte de mercadorias. A mesma SNCF opera em linhas de alta velocidade em Espanha com uma sua marca branca, a Ouigo. Também a marca branca Iryo participada pela pública italiana, Trenitalia opera na alta velocidade espanhola. E a RENFE espanhola é a principal candidata a apoderar-se do mercado ibérico se o Estado português continuar a brincar com coisas sérias.

Se o liberalismo que nos foi imposto afinal está a parir um rato ao abrir as portas do país a empresas públicas estrangeiras – note-se nas linhas mais rentáveis – então reabilite-se reunificando a também pública CP – Caminhos de Ferro Portugueses com operação em todas as linhas, as mais e as menos rentáveis e, obviamente, a gestão da infraestrutura, unificando o saber ferroviário com a roda e o carril, como é a prática histórica e geograficamente representativa nos maiores e mais desenvolvidos países.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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