Os vários exércitos da contra-revolução foram responsáveis por 566 acções violentas, em Portugal, entre Maio de 1975 e Abril de 1977, uma média de 24 actos de terrorismo por mês, quase um por dia, causando mais de dez mortes e prejuízos incalculáveis. Numa altura em que um ex-MDLP se candidata a vice-presidente da Assembleia da República, pretende-se conhecer estas páginas esquecidas da história de Portugal.
Diogo Pacheco de Amorim teve importância no MDLP?
Esteve no braço político. Já na sua juventude era um jovem irreverente, em Coimbra, onde ele e José Miguel Júdice começaram-se a notabilizar na extrema-direita. Posteriormente, foram duas figuras importantes do braço político do MDLP que estava sedeado em Madrid. Agora, obviamente, o tio dele é que era um peso pesado. O Fernando Pacheco de Amorim é que era a grande referência da família. Há até um pormenor curioso, a família, nesse período agitado, teve de fugir para Espanha. Tinham uma casa na zona de Caminha. O curioso é que o Chega, de que Diogo Pacheco de Amorim é vice-presidente, faz a sua diabolização da comunidade cigana, de que o mesmo Diogo Pacheco de Amorim nunca se demarcou. Muito curioso é que a família, durante o chamado Verão Quente, recorreu a muitas pessoas da comunidade cigana para fugir para Espanha. Os ciganos eram considerados patriotas porque faziam segurança a muita gente ligada à direita, nos comícios, acções de rua, etc., etc. Há familiares que ainda se lembram da grande ajuda que lhes deram alguns membros da comunidade cigana para poderem fugir para Espanha. Não deixa de ser irónica esta falta de memória.
Num direito de resposta que Diogo Pacheco de Amorim enviou para SIC ele defende que não tem nada a ver com os atentados, porque o MDLP dissolveu-se antes dos atentados da rede bombista. No entanto, a sentença do tribunal considera que o assassinato do padre Max foi organizado e executado a mando do MDLP.
As pessoas que pertenceram ao MDLP, tanto ao braço político como os que fizeram mais acções armadas, insistem na tese que logo após o 25 de Novembro o MDLP acabou com todas as suas actividades. Apesar disso, o próprio Ramalho Eanes recorda, em várias entrevistas, que o MDLP não ficou satisfeito com os resultados do 25 de Novembro, e que o que queriam era a eliminação pura e simples do PCP. É verdade que a partir dessa altura há exércitos de gente dos grupos terroristas – que estavam ao serviço do MDLP, ELP e do Plano Maria da Fonte – que começaram à actuar, por sua livre e espontânea vontade, ao serviço de quem lhes pagava. Os negócios que já existiam antes, que já se davam à sombra do MDLP, continuaram a fazer-se sem esse guarda-chuva, como os de tráfico de diamantes, armas, etc.... Aquilo que se fazia no quadro de um movimento que garantia querer lutar pela democracia e liberdade em Portugal, passou-se a fazer conforme os serviços eram pagos. Mas dizer que depois do movimento ter supostamente suspendido as actividades, não existe gente que executa planeamento e acções em nome desse movimento e com beneplácito de dirigentes do MDLP, é completamente mentira. Para não ir mais longe, o próprio crime do padre Max, que é executado em Abril de 1976, é, em 1979, atribuído em tribunal ao MDLP. Os juízes não condenam o movimento, mas o Tribunal de Vila Real, na sentença, atribui ao MDLP todo o planeamento que levou ao assassinato do padre Max. Não consegue provar de quem é que desse movimento, em concreto, terá partido a ordem que levou à morte do padre Max e da estudante Maria de Lurdes. Apesar dos fortes indícios, o tribunal não consegue determinar quem executou esse atentado. No entanto, a própria sentença reconhece que o MDLP estava por detrás dessas mortes e que tinha definido como objectivo o derrube do regime democrático saído do 25 de Abril. Isso está lá preto no branco.
Há um terrorista, vindo da FNLA, conhecido como Puto, que reivindica ter participado na colocação da bomba que matou o padre Max.
Eu acrescento isso no fim do livro. Conheço bem o autor da biografia do Puto, o Ricardo de Saavedra, que foi meu chefe no Porto, e que domina muito bem os bastidores desses movimentos. Não tenho razão nenhuma para duvidar das afirmações que estão nesse livro. O Saavedra falava com conhecimento de causa. Tinha estado na África do Sul. São factos que não se conheciam até há pouco tempo. O que se sabe é que o MDLP queria calar aquele padre. Os financiamentos da acção, provavelmente foram canalizados por Joaquim Ferreira Torres.
Algo que continua sem se saber foi quem o executou e quem foram os mandantes do assassinato de Joaquim Ferreira Torres.
A minha convicção, depois de ter lido e relido o processo, falado com muitas testemunhas, gente que o conhecia de perto e com familiares, é que pode ter sido por várias razões. Mas creio que pesou mais a questão política: ele tinha dito estar na disposição de abrir o «livro» e contar uma série de coisas que se passaram depois do 25 de Abril e levaram à criação daqueles grupos terroristas. É preciso dizer que ele sabia muito, tinha sido o principal financiador desses grupos e era o elemento de ligação entre os vários sectores da rede bombista. Muitos operacionais dependiam dele e do dinheiro dele para executar várias acções.
Numa altura em que o país entrava numa aparente acalmia, em que já tinha entrado no rumo que PSD, CDS e PS queriam depois do 25 de Novembro, se um homem como ele vai a tribunal – o processo da rede bombista continuava e só será resolvido no início dos anos 80 - e fala, ia ser muito complicado.
Não aconteceu nada a nenhum dos mandantes. Por que razão é que ele estaria disposto a falar?
Ele ameaçou várias vezes. Mesmo em família disse reiteradamente que estava farto. Ficou bastante desiludido pelo facto do major Melo Antunes ter dito, depois do 25 de Novembro, que o PCP era indispensável à democracia. Segundo ele, o compromisso que havia com pessoas do Grupo dos Nove era no sentido do PCP ser ilegalizado. Era a promessa que ele dizia que lhe tinham feito. Fica bastante zangado com o andamento do processo e com o facto de este poder ser encaminhado no sentido de tudo ser descoberto. Teme poder vir a sentar-se no banco dos réus. E hoje é sabido que ele corrompeu gente da magistratura para não ser acusado em tribunal. Contudo, a certa altura, ele sentiu que isso ia acontecer. Garante à família que nunca se sentará no banco dos réus e que antes disso abre o «livro» e conta tudo o que sabe. Isto é sabido por bastante gente. Com este envolvimento, poder falar era um risco muito grande para muitas pessoas e forças políticas, que temem perder o que conquistaram. Também poderá ter contribuído para isso, o envolvimento do engenheiro Joaquim Ferreira Torres em vários negócios duvidosos. Mas, por aquilo que eu investiguei, não acredito que as duas coisas sejam separáveis, até porque estavam misturadas. A rede bombista era um enorme guarda-chuva para todo o tipo de tráficos e negócios. O próprio Ramiro Moreira acabou por confessar isso quando foi detido pela Polícia Judiciária, afirmando que o que se queria não era a democracia, mas fazer negócios à sombra disso.
ELP, MDLP, Maria da Fonte e a rede bombista actuaram para aumentar o sentimento anticomunista, fizeram recurso a muitas operações chamada de «falsa bandeira», como quando Jorge Jardim, ex-agente secreto de Salazar, denunciou ao COPCON que o bispo de Braga ia fugir com divisas, e outras acções que podiam ter redundado num enorme massacre, como o planeado atentado em Fátima a 13 de Maio de 1976.
Não foi só o Ramiro Moreira que denunciou essas acções. Várias pessoas confirmaram que esteve previsto fazer explodir uma carga explosiva de 100 quilos durante a procissão, em Fátima, provocando muitas centenas de mortes, que seria atribuída aos comunistas. Esteve sempre em cima da mesa fazer atentados que permitissem culpabilizar o PCP e as forças mais à esquerda. Foi visto em várias reuniões [das organizações bombistas de extrema-direita] que se passasse a mensagem que isto não era apenas uma questão de gente de direita que estava incomodada com a situação, mas que era uma resposta legítima a atentados bombistas e outas acções violentas que seriam atribuídas à própria esquerda. Aliás, o próprio Ramalho Eanes, numa fase inicial, desconfia bastante das investigações da Polícia Judiciária Militar no Norte, porque acha que o que há é bombismo de esquerda.
Em vários livros e documentos diz-se que havia militares do Grupo dos Nove, e até o próprio General Ramalho Eanes, que teriam laços com o MDLP.
Há dois elementos do Conselho da Revolução que mantiveram muitos contactos com esses sectores: Canto e Castro e Vítor Alves. Este último teve muitas conversas com Joaquim Ferreira Torres, para que fosse elaborada uma estratégia de criar o caos e colocar nas pessoas a ideia que era preciso trazer ordem ao país. Isso influenciou muita gente, inclusive sectores do próprio Partido Socialista. Ainda está por escrever a história das cumplicidades das altas estruturas do PS com o MDLP.
Por causa de Diogo Pacheco de Amorim houve duas declarações que acho bastante simbólicas: uma de José Miguel Júdice, afirmando, em causa própria, que o MDLP não era um grupo terrorista; e outra de Lobo Xavier, em que este afirma que se deve fazer ao Chega o que os democratas fizeram ao PCP, ou seja, fazer com que o seu extremismo se mitigasse paulatinamente e se integrasse na democracia. Lendo o seu livro1, parece que dificilmente o CDS poderia ser chamado de democrático, dado que está pejado de quadros do regime fascista e metido até ao pescoço na rede bombista.
O CDS, em todas as zonas de província, era muito mais activo e cúmplice desses movimentos do que o PPD. Em Ponte de Lima, alguns operacionais e tipos que compram bombas e armamentos, era gente do CDS. O PPD também teve muitas pessoas envolvidas com esses operacionais, mas Sá Carneiro teve aí um papel de dividir as águas e de os fazer sair do partido. Ele tem uma conversa com Ramiro Moreira, que tinha sido segurança dele, para sair do PPD.Tenta travar as ligações oficiais do PPD à rede bombista. Dá um sinal que não quer essas ligações. Sá Carneiro era muito próximo do bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, que foi dentro da Igreja uma das pessoas que condenou o envolvimento desta neste tipo de situações. Foi praticamente a única figura do episcopado que não alinhou em actividades subversivas. O CDS foi fundamental para articular muitas dessas acções violentas, até mesmo o Plano Maria da Fonte, em que o Paradela de Abreu organiza a «luta contra o comunismo», tendo como ponto de partida as dioceses a Norte. É com a ajuda do CDS, em que se envolvem ex-PIDES e Legião Portuguesa, que se fazem muitas das acções contra o PCP e outros partidos de esquerda. No próprio Congresso do CDS, no Palácio de Cristal, o que passou à história não foi exactamente o que aconteceu. Eu entrevistei vários elementos do CDS e PPD da altura, que queimaram carros e fizeram distúrbios para dar a ideia que era a esquerda que estava a fazer este tipo de acções. E alguma esquerda o fez, mas não aquela que tem as costas largas nesta história [PCP].
Não querer eleger Pacheco de Amorim para a mesa do parlamento, pelas suas ligações à rede bombista, não é uma certa hipocrisia? Alguns dos principais elementos da rede bombista estão ligados ao PS, PPD e CDS: Ramiro Moreira foi guarda-costas de Sá Carneiro e militante número sete do partido; José Esteves foi guarda-costas de Freitas do Amaral; e o líder do grupo terrorista CODECO foi responsável da segurança do PS.
Essa história está por fazer. A cumplicidade do PS com aquilo que foi a rede bombista está por escrever. O próprio Mário Soares chega a dizer nos jornais que o Norte devia seguir o exemplo de Rio Maior [onde foram atacadas e incendiadas as sedes do PCP e da FSP]. Na zona do Minho, houve dirigentes socialistas, da concelhia de Viana, que se demitiram porque o PS estava a orquestrar um atentado na zona de Caminha em que seria incendiada uma sede do próprio PS, para culpabilizar o PCP. Durante o debate televisivo entre Mário Soares e Álvaro Cunhal encomendaram a Ramiro Moreira que fizesse explodir um petardo na sede do PS, no Rato, para acusar os comunistas disso. Há muita história para escrever. As pessoas não sabem o que aconteceu, e têm uma total ignorância da existência e do papel da rede bombista de extrema-direita, porque a história foi escrita pelos vencedores do 25 de Novembro, que apagaram aquilo que menos lhe convinha. Algumas das pessoas que dizem hoje «não passarão» a Duarte Pacheco de Amorim, sabem muito bem o que se passou e as cumplicidades do PS na rede bombista.
- 1. Quando Portugal Ardeu: Histórias e segredos da violência política no pós-25 de Abril, de Miguel Carvalho, Oficina do Livro, 2017
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