Como se as razões tratadas no artigo anterior – que essencialmente se concentravam no valor real de venda e na diferença entre a avaliação realizada e o seu verdadeiro valor – não fossem já de uma enorme gravidade, o Tribunal de Contas aborda e ilustra ainda um vasto conjunto de processos, uns ilegais, outros irregulares, outros simplesmente perigosos, que criam as condições para a corrupção, e para que decisões completamente opostas ao interesse público acabem a ser defendidas e praticadas por quem deveria defender o interesse público.
Apresentemos primeiro a síntese que o próprio Tribunal de Contas realiza: «Para além do que já foi amplamente reportado sobre deficiências graves no processo de privatização (com desfasamentos materiais, falta de avaliação prévia, deduções ao preço, desequilíbrio dos contratos de concessão a favor do comprador, transição da administração da ANA pública para a ANA privada, incumprimento de legislação tributária e orçamental aplicável), a auditoria revelou desconformidades e inconsistências em documentação processual entregue pela Parpública».
Promiscuidade entre o público e o privado
O Tribunal de Contas aponta três momentos graves neste processo onde a mistura entre as funções de administração pública e privada criam riscos enormes e inaceitáveis.
A primeira situação é a nomeação da última Administração da ANA pública. As primeiras cartas-convite para iniciar o processo de privatização são enviadas a 7 de Setembro de 2012. O governo muda a administração da ANA em Outubro de 2012. O Tribunal de Contas começa logo por estranhar esta mudança, pois trata-se de uma administração completamente nova, necessariamente com menos experiência e conhecimento da empresa, para tratar da privatização da empresa, num quadro em que a ANA tem um papel muito relevante na avaliação das propostas técnicas dos diferentes candidatos.
Se saísse à Vinci o Euromilhões todas as semanas, demoraria uns 30 anos a atingir o lucro que vai conseguir em 50 anos, com a compra da ANA. A Auditoria do Tribunal de Contas (TC) à ANA, publicada na sexta-feira, é completamente arrasadora para a privatização, para quem a decidiu, para quem a apoiou e para quem a fiscalizou. O PCP já propôs uma Comissão Parlamentar de Inquérito, sendo ainda de esperar que o Ministério Público pegue em muitos dos indícios de crime que a auditoria deixou expostos. O PSD veio a público acusar o Tribunal de Contas de ser parcial, e de não ter ouvido os ministros do PSD que tudo poderiam explicar. Esperemos que agora esteja disposto a apoiar a proposta do PCP para que esses ministros sejam chamados a dar explicações ao país e à Assembleia da República. A auditoria do TC é pública, está publicada no site do Tribunal de Contas, e fica o convite para que todos a leiam. Ficarão seguramente com um rico quadro sobre o que são – na realidade – as privatizações, e de como estas criam a maior parte das oportunidades de corrupção em Portugal. Neste e num próximo artigo irei tentar resumir o que está na auditoria. Desde logo, o Tribunal de Contas estabelece que o preço da privatização foi de 1127 milhões de euros, e não os 3080 milhões de euros que o então Governo PSD/CDS comunicou ao país. Foi por esse valor – 1127 milhões – que a ANA foi vendida. Para chegar a esse valor, o Tribunal de Contas expõe que o Governo fez um truque e cometeu uma ilegalidade. O truque é que o valor anunciado publicamente era o valor da venda da ANA (1198,5 milhões) mais o valor da dívida da ANA (1,2 mil milhões para pagar a concessão, 647 milhões de dívida corrente da ANA e 44 milhões de outras responsabilidades). Um truque que o PCP já denunciara publicamente, mas a que agora o Tribunal de Contas – com acesso a toda a documentação – vem colocar os valores definitivos. A dívida da empresa não pode ser somada ao valor de venda, pois a esse passivo corresponde algum activo, no caso da ANA, por exemplo, os 1,2 mil milhões de dívida pela compra da concessão no passivo (o Pagamento Inicial, como lhe chamaram) implicavam a existência no activo de um valor da concessão por 50 anos de dois mil milhões de euros (completamente subestimado, mas já lá vamos), e as outras dívidas existentes – no essencial ao BEI – também tinham no activo o reflexo do valor patrimonial acrescido dos aeroportos modernizados nos anos anteriores, nomeadamente no Porto e Faro. Aliás, é por isso mesmo que, como refere o TC, «o Eurostat não aceitou que a receita gerada pelo Pagamento Inicial fosse contribuir para abater o défice público de 2012, alegando que esta operação não iria gerar valor adicional.» «A auditoria do TC é pública, está publicada no site do Tribunal de Contas, e fica o convite para que todos a leiam. Ficarão seguramente com um rico quadro sobre o que são – na realidade – as privatizações, e de como estas criam a maior parte das oportunidades de corrupção em Portugal.» Mas o truque é isso mesmo: um truque. Foi uma forma de o Governo mentir ao povo português, abusando do facto de só ele e a Vinci (até agora) conhecerem os detalhes da privatização. Mas mentir ao povo português ainda não é crime. E o Tribunal de Contas prossegue: «O Estado concedeu à VINCI os dividendos de 2012, quando a gestão ainda era pública, e suportou o custo financeiro da ANA para cumprir o compromisso assumido no contrato de concessão, tendo o preço da privatização (1127,1 Milhões de euros) sido 71,4 milhões de euros inferior ao oferecido e aceite (1198,5 milhões de euros).» E aqui já começa a fronteira que exige o apuramento das eventuais responsabilidades criminais. Porquê? Porque é que o Governo aceitou reduzir 71,4 milhões ao preço da ANA? Porque é que os dividendos de 2012, com a ANA sob gestão pública, são creditados à Vinci mas aparecem na Parpública como tendo sido recebidos? Quem decidiu? Com base em quê? Esse dinheiro, recebido pela venda da ANA, foi usado em 90% para abater à dívida pública, como informou então o Ministério das Finanças: 992,5 milhões de euros. Só que, demonstra o TC, para poder fazer a venda, o Estado pagou primeiro 286 milhões ao Município de Lisboa (para ficar na posse dos terrenos do Aeroporto de Lisboa) e 80 milhões à Região Autónoma da Madeira (pelos direitos do Aeroporto), pelo que, na realidade, o contributo desta venda para a amortização da dívida pública deve ser subtraído desses valores, ficando pelos 626 milhões de euros. Por fim, o TC dedica-se por vários ângulos ao tema do valor da concessão, que no essencial era o valor da ANA quando foi vendida. Começa por destacar que «A urgência em concluir a privatização fez iniciar e aprovar o respectivo processo sem todas as condições necessárias à sua regularidade, transparência, estabilidade, equidade e maximização do encaixe financeiro. Agravando os riscos destes desfasamentos, a avaliação intempestiva da ANA não supriu a sua falta de avaliação prévia, que era legalmente exigível.» Desta conclusão, o que a generalidade da imprensa escolheu destacar é a crítica à pressa. Mas a questão central é outra: a operação foi ilegal, não cumpriu a lei. O Governo avançou para a venda de um activo – estratégico! – sem sequer ter uma avaliação do mesmo. E foi ao longo do acelerado processo de venda que o Governo vai, primeiro, receber uma avaliação financeira, e, depois, alterar as condições dessa avaliação, com um conjunto de decisões que alteram o valor da ANA, que aumentam brutalmente o valor da ANA. «A generalidade da imprensa escolheu destacar é a crítica à pressa. Mas a questão central é outra: a operação foi ilegal, não cumpriu a lei. O Governo avançou para a venda de um activo – estratégico! – sem sequer ter uma avaliação do mesmo.» Desde logo, o Governo só formaliza a assinatura do contrato de concessão depois dos concorrentes à privatização terem apresentado as suas primeiras propostas de preço e condições. Fá-lo, usando mais um truque: apesar da assinatura do contrato de concessão decorrer durante um processo de privatização, e do mesmo contrato ter sido negociado com os putativos compradores, o Governo usa o regime de concessão a empresa pública para fugir a um conjunto de obrigações que teria se a concessão fosse a uma empresa privada. «Ora, configurando o contrato de concessão celebrado com a ANA uma PPP, como o Governo assume em 2018, essa PPP foi gerada com a privatização da ANA em 17/9/2013, sem esse contrato de concessão (celebrado entre o Estado e uma empresa pública em 14/12/2012) ter sido objecto de qualquer alteração». O contrato de concessão assinado, já durante o processo de privatização, altera o valor da ANA. Como alterou o valor da concessão a alteração introduzida sobre o NAL: «a construção do NAL é indissociável do processo de privatização da ANA sendo intenção do Governo que fosse, primordialmente, construído e explorado pela ANA privatizada visto, já no decurso do processo de privatização, lhe atribuir o direito exclusivo de apresentar uma proposta para a concepção, construção e exploração desse aeroporto. Com essa decisão e com a opção contratual de o desenvolvimento do NAL implicar o pedido do reequilíbrio económico e financeiro da concessão e/ou prorrogação da concessão, o Estado contribui para aumentar o valor da empresa durante o processo de privatização.» Por fim, o Governo altera a lei durante o processo, alterando o valor da concessão: «as disposições sobre a regulação económica da concessão transitaram, durante o processo de privatização, da lei aplicável para o contrato, fragilizando a regulação e com prejuízo para a estabilidade processual e para a transparência e publicidade daquelas.» Começamos por citar: «O Grupo ANA acumulou 1436 M€ de resultados líquidos, de 2014 a 2022 (9 anos), 25% do seu volume de negócio no mesmo período (5838 M€). A manter-se este nível de rentabilidade para o volume de negócios (Receita Bruta da Concessão) previsto pela ANA de 2013 a 2062 (50 anos) – 93204 M€ – seriam gerados 23301 M€ de resultados líquidos acumulados, dos quais seriam pagos ao Estado português 2947 M€ entre 2023 e 2062 (conforme consta do Quadro 4.26 na página 175 do Relatório do Orçamento de Estado para 2024). Mesmo com o Pagamento inicial da Concessão (1200 M€) e o preço da privatização (1127 M€), mas deduzindo os 366 M€ que pagou, o Estado receberia 21% desses resultados e a concessionária ficaria com os restantes 79%». «O contrato de concessão assinado, já durante o processo de privatização, altera o valor da ANA. Como alterou o valor da concessão a alteração introduzida sobre o NAL (...).» Esta é a síntese feita pelo TC sobre o valor da ANA. Dá para tirar várias conclusões: (1) Em 9 anos, o privado já ganhou tudo o que investiu e já tem um lucro de 309 milhões de euros. E a concessão tem mais quarenta anos. E acrescentamos nós, que a bom rigor o Tribunal de Contas deveria ter acrescentado a estes valor o Resultado líquido de 2013, 50 milhões, que a ANA privada também embolsou. (2) Com a taxa de rentabilidade destes 9 anos (25%), a ANA gerará um total de 23 301 M€ de resultados líquidos até ao final da concessão, dos quais terá que entregar 2947 M€ ao Estado, ficando com 20 054 milhões para si própria. Ou seja, que a multinacional comprou, por mil milhões de euros, o direito a arrecadar vinte mil milhões. (3) Que somando o valor pago pela empresa (1127 M€) aos 2947 M€ que o Estado ainda receberá, e descontando os 286+80 milhões já explicados acima, a divisão entre o privado e o público das receitas desta PPP é de 71% para o privado e 29% para o público. Quando o privado nem sequer tem quaisquer obrigações de investimento! (4) Ora, a concessão à ANA da rede aeroportuária nacional por 50 anos, que é o que permite à Vinci este tipo de lucros, estava avaliada por 2 mil milhões de euros no Relatório e Contas da ANA, e por valores similares nas avaliações encomendadas. A discrepância entre estes valores é a dimensão do assalto e da fraude nesta privatização. (5) A estas contas, acrescentamos nós outras. A taxa de rentabilidade em 2022 foi de 38%, e não os 25% registados entre 2013/2022. Porquê esta diferença? Desde logo porque houve dois anos brutalmente impactados pela pandemia. Se usarmos para os próximos 40 anos uma taxa similar àquela que a ANA apresenta em 2019 e 2022, os 38%, chegaremos a um valor superior em mais 10 mil milhões de euros. O que colocaria o volume de lucros arrecadados pela Vinci em 30 mil milhões, e a sua parte nas receitas acima dos 80%. Repetimos: com um investimento de mil milhões de euros. Se saísse à Vinci o Euromilhões todas as semanas demoraria uns 30 anos a atingir tal lucro. Com a compra da ANA vai consegui-lo em 50. No próximo artigo trataremos das restantes questões levantadas pela auditoria do TC à privatização da ANA. Sim, porque ainda há muito mais! Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Opinião|
Privatização da ANA: um assalto do tamanho de 30 mil milhões de euros! (I)
Por quanto foi a venda?
E quanto valia?
20 a 30 mil milhões de receita pública desviada
Contribui para uma boa ideia
Mas o verdadeiramente grave vem a ocorrer a 19/11/2012, quando um representante da Vinci declara em conferência de imprensa a intenção desta multinacional de manter na gestão privada a administração recém-nomeada para a ANA pública, «esta intenção foi confirmada depois da privatização, tendo sido mantidos todos os membros do CA da ANA pública».
E sublinha o Tribunal de Contas: «Esta declaração é precedida pela comunicação, em 6/11/2012, da ANA pública à Parpública, com a apreciação das propostas não vinculativas [negativa para a Vinci] e veio a ser seguida pela comunicação, em 17/12/2012, da ANA pública à Parpública, com a apreciação das propostas vinculativas [positiva para a Vinci]». «Da página 29 do Relatório da Parpública previsto no artigo 13.º do Caderno de Encargos consta sobre as propostas vinculativas “Quanto às propostas técnicas, verifica-se, de acordo com a opinião manifestada pela Administração da ANA, que a proposta da Vinci é a mais forte e a mais competitiva de todas as apresentadas pelos concorrentes”. Acontece que a apreciação da ANA à proposta não vinculativa da Vinci a tinha qualificado de irrealista e inexequível».
Ou seja, não só é nomeada uma administração nova especificamente para a venda, como essa administração é imediatamente contratada – e publicamente – por um dos concorrentes, como vai introduzir alterações à apreciação técnica das propostas em favor do concorrente que publicamente a contratara para a futura gestão privada. E o Tribunal de Contas diz expressamente não ter encontrado qualquer razão para essa alteração de posição.
(Uma das coisas que desapareceu com a privatização da ANA foi a informação sobre os salários dos seus administradores, que até lá constava dos Relatórios e Contas. Mas uma coisa sabemos: na ANA privada não têm o limite a que estão sujeitos os administradores públicos. Para termos uma ideia, o conjunto das remunerações do CEO da Vinci em 2022 foi de 5,9 milhões de euros, cerca de 40 vezes mais que o salário do presidente da ANA pública em 2011.)
Depois o Tribunal de Contas vai ainda recordar a inadmissível transição de membros da Administração privada da ANA para as entidades encarregues de regular a ANA e gerir o contrato de concessão: «Em 23/7/2015 cessa funções um dos membros do CA da ANA privada (transitado da ANA pública), por ter sido designado para o cargo de Presidente do CA da ANAC». «Em 31/12/2017, verifica-se a cessação de funções do Presidente do CA da ANA privada (transitado da ANA pública), por ter sido designado para o cargo de Presidente do CA da NAV. Porém, o objecto desta empresa requer a sua intervenção sobre actividades da ANA, como é o caso das situações referidas na apreciação da proposta não vinculativa da Vinci quanto à opção do Montijo para o NAL».
O próprio Tribunal recorda que, por diversas vezes, criticou o conflito de interesses, sem ter sido atendido pelo Governo. Uma situação que «importa não mais sustentar nem repetir». E conclui: «O não acatamento das recomendações do Tribunal para corrigir as situações de conflito de interesses na ANAC... teve e tem impacto material na auditoria sobre a ANA».
Num negócio que envolve, como demonstrado no parágrafo anterior, hipotéticos benefícios para um privado de vinte mil milhões de euros, é criminoso provocar este conjunto de conflitos de interesse. E não foi só o Tribunal de Contas que alertou para estes conflitos de interesses – no caso da ANAC fizeram-no os trabalhadores, as suas ORT, o PCP, e outras forças políticas. Mas o Governo PS não quis ouvir.
Incumprimento da legislação tributária
Um dos alertas que o Tribunal de Contas repete múltiplas vezes é que a audição foi prejudicada pelo facto de o Governo nunca ter atendido a outros alertas do TC, nomeadamente sobre «a falta de controlo da receita pública proveniente da concessão do serviço público».
«E não foi só o Tribunal de Contas que alertou para estes conflitos de interesses – no caso da ANAC fizeram-no os trabalhadores, as suas ORT, o PCP, e outras forças políticas. Mas o Governo PS não quis ouvir.»
De facto, desde 2019 que o TC alerta que as taxas que a ANA cobra e recebe são uma receita pública que o Estado deve contabilizar como despesa para com a concessão. O que continua a não acontecer. Diz o TC que a contrapartida pela prestação de actividades e serviços aeroportuários são taxas «que devem ser administradas por entidade pública legalmente incumbida da sua liquidação e cobrança», devendo essa cobrança «ser objecto de previsão e contabilização, como receita pública, tal como a entrega do produto destas taxas à concessionária, nos termos contratuais, também o deve ser, como despesa pública», e, acrescenta, «com a omissão da receita, é lesado o direito dos tributados à garantia pública de o valor exigido ser o devido e com a subsequente omissão na despesa, é lesado o direito dos cidadãos serem informados da receita e despesa pública relativas à concessão de serviço público aeroportuário». Esta omissão «é material», pois «a receita das taxas aeroportuárias sujeitas a regulação económica (receita regulada) reportada pela ANA perfez 3167 milhões de euros de 2014 a 2021, constituindo uma estimativa dos encargos públicos acumulados com a concessão atribuída à ANA em 14/12/2012».
Onde depois se torna particularmente clara a falta de controlo da receita pública é nas regras sobre os pagamentos a realizar pela ANA ao Estado, que são tão pouco claras, e sobre receitas tão pouco controladas, que para a entrega referente a 2022, houve as seguintes interpretações: 0,4 M€ (e 351 M€ em 2062), 8,5 M€ (e nada em 2062), 9,3 M€ (e nada em 2062). Depois de alguma discussão, decidiu a ANA: 8,5 M€ (e nada em 2062).
Façam o que mando, não o que faço
A venda da ANA foi realizada pelo Governo PSD/CDS, no quadro do pacto entre as troikas assinado por PS/PSD/CDS e a UE/BCE/FMI. O Tribunal de Contas constata que «A decisão de venda integral da ANA fez Portugal divergir da maioria dos países da UE, que optou por manter o sector sob gestão pública ou estar presente no capital social das empresas.» E exemplifica: em 2010, apenas um país tinha a rede aeroportuária privatizada (Chipre), e em 2016 eram apenas quatro (Chipre, Portugal, Hungria e Eslovénia). Como é evidente, os países que ordenaram a Portugal – para bem da economia portuguesa – a privatização dos aeroportos, nos seus países não o fizeram.
A fidedignidade da documentação
Por diversas vezes o Tribunal dá conta do seu desagrado por várias inconformidades na documentação entregue pela Parpública, que «revelam o risco material de deturpação de documentação processual» ou, noutra expressão, o «risco material de falta de fidedignidade de documentação processual».
O próprio Tribunal reconhece que o tempo mediado entre a privatização e a auditoria facilitam a ocorrência dessas incongruências. Mas falta claramente documentação-chave no processo que é preciso localizar e analisar.
Recordamos que a privatização foi concluída em 2013, e a lei só exigia que a documentação fosse preservada por cinco anos (o que o TC contesta e denuncia). A auditoria agora publicada foi solicitada pela Assembleia da República a 10/10/2018, e o Tribunal ainda a arrastou mais cinco anos (e as justificações apresentadas, sendo reais, não justificam o tempo decorrido).
Nada disto é transparente, nada disto salvaguarda o interesse público. É impressionante a forma leviana e quase secreta como se pode vender uma empresa pública estratégica, no mesmo país em que para contratar um trabalhador para uma empresa pública é precisa a assinatura de dois ministros e um longo processo de requerimento.
Privatização não salvaguardou o interesse público
Por fim, e de forma muita taxativa, o Tribunal de Contas deixa claro que «A privatização da ANA não salvaguardou o interesse público»; Não maximizou «o encaixe financeiro resultante da alienação das acções representativas do capital social da ANA» (como visto no primeiro texto); Não se verificou «o reforço da posição competitiva, do crescimento e da eficiência da ANA, em benefício do sector da aviação civil portuguesa, da economia nacional e dos utilizadores e utentes das estruturas aeroportuárias geridas pela ANA»; «não ter sido minimizada a exposição do Estado português aos riscos de execução relacionados com o processo de privatização, não se tendo assegurado que o enquadramento deste processo protegeria cabalmente os interesses nacionais».
As duas últimas alíneas prendem-se com a forma como o Governo entregou, em monopólio, um sector estratégico nas mãos de uma multinacional, cujos interesses podem naturalmente divergir dos interesses nacionais, sem verdadeiras salvaguardas para o caso de a multinacional não satisfazer – ao longo de 50 anos – o interesse nacional.
O Tribunal não o analisou, mas como já denunciámos publicamente num anterior artigo no AbrilAbril, o investimento caiu para metade com a privatização, menos 600 milhões de euros em dez anos, com esse não investimento a ser transferido para os lucros da multinacional.
A auditoria analisou, e considerou particularmente grave, a forma como foi negociada a construção do Novo Aeroporto de Lisboa (NAL), com o Governo a ter entregue a construção e exploração do NAL à Vinci sem ter acautelado o interesse nacional face à possibilidade – que se veio a confirmar – desta insistir na proposta Portela+Montijo, considerada irrealista e irrealizável pela própria ANA pública (até Novembro de 2012). E o Tribunal ainda estranha que ninguém no Governo tenha entendido ser preciso acautelar os impactos provocados pelo facto de a Vinci ser igualmente detentora da Lusoponte. «Em suma, o projecto do Novo Aeroporto de Lisboa que, à data da privatização, estava associado à construção de uma terceira ponte é indissociável do processo de privatização pelo valor que aportou à ANA, sobretudo para a Vinci, que já era detentora da maioria do capital social da Lusoponte.»
Foi a privatização que levou à não construção do NAL e que o continua a travar, foi a privatização que entregou a uma multinacional, não só o dinheiro necessário para construir o Aeroporto, como a possibilidade de decidir da sua construção ou não.
É preciso perder as ilusões
O Tribunal de Contas faz toda esta auditoria acreditando ser possível fazer privatizações salvaguardando o interesse público. É esse o seu mandato, mas até acredito que a maioria dos membros do Tribunal alimenta ilusões de que tal é possível.
Mas o que demonstra cada relatório, cada inquérito, cada estudo sobre uma privatização em concreto, é que as privatizações – e as suas primas, as PPP – são a maior fonte de corrupção neste país, e só há uma coisa verdadeiramente séria a fazer perante uma privatização: combatê-la!)
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