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«Há pouco tempo, este giro era feito por dois»

Pouco perceptível aos cidadãos é o quanto a sobre-intensificação do trabalho, nos «novos» modelos de gestão das empresas (e mesmo da Administração Pública), tem por consequência a degradação das condições de trabalho.

CréditosInácio Rosa / Agência Lusa

A morar num segundo andar de uma movimentada rua de uma grande cidade, um período houve em que recebia com alguma frequência, enviadas pelo correio, encomendas e cartas registadas com aviso de recepção.

No início da manhã, ouvia a campainha da rua. Não tendo intercomunicador, descia as escadas para abrir a porta e atender quem era. Não encontrava ninguém. Inicialmente, desvalorizei estas situações, presumindo serem enganos ou alguma brincadeira.

Contudo, de seguida, não pude deixar de as relacionar com o facto de, mais tarde, ao abrir a caixa do correio (com janelete para a rua), encontrar avisos dos CTT para ir levantar uma carta ou uma encomenda a uma das estações de correios.

Pormenor a fixar é o de que os avisos dos CTT informavam sempre: «procurado às 9h – 9h05 – 9h10…, ninguém atendeu». Justamente às horas em que, estando em casa, me tinha preocupado em descer à rua para abrir a porta … e não encontrar ninguém.

Claramente, quem tinha tocado à campainha nesses dias tinha sido o carteiro, não esperando minimamente que alguém descesse para lhe entregar a encomenda ou a carta.

Resolvi esclarecer estas situações. Um dia, mais ou menos à mesma hora, ouvindo tocar a campainha, desci as escadas a correr, tirei rapidamente da caixa do correio novo aviso para ir levantar mais uma carta à estação dos CTT (com a data desse dia e mais uma vez com a menção de que «às 9h… ninguém atendeu») e saí à rua à procura do carteiro. Avistei-o ao dobrar da esquina, com o carrinho de mão onde transportava o correio.

Rapaz muito novo, à minha interpelação e questionamento sobre o comportamento descrito, ficou em pânico, justificando-se: estava contratado a prazo e tinha, há poucos meses, atribuída a tarefa de entregar correio naquele percurso. Mas, quase todos os dias, o volume de correio que tinha para entregar, mesmo acelerando tanto quanto pudesse, não «cabia» no horário de trabalho se cumprisse rigorosamente todo o processo estabelecido para a tarefa de o entregar cumprindo os padrões de qualidade deste serviço público. Ou seja, para esperar que os destinatários atendessem e descessem para, presencialmente, lhes entregar as encomendas ou correio, após lhes confirmar a identidade como destinatários e deles recolher, assinado, o aviso de recepção. E muito menos para, nesse sentido, subir a moradas em andares superiores.

«Há pouco tempo, este giro era feito por dois», argumentou finalmente. O que compreendi.

Vem-me agora à memória esta situação a propósito da posição assumida pelo presidente do Sindicato Nacional dos Trabalhadores dos Correios recente (Antena 1, 16/12/2021), denunciando atrasos na entrega do correio (sobretudo encomendas e registos), atribuindo as causas desta situação à escassez de trabalhadores (que estima em pelo menos 600) no quadro de pessoal dos CTT, agravada com o maior volume de correio a entregar nesta época do ano e por surtos de covid-19 surgidos entre os trabalhadores de algumas estações dos CTT.

Aliás, este relacionamento entre a (falta de) qualidade e prontidão do serviço de correios em Portugal, e a insuficiência de trabalhadores da empresa, já esteve patente na recente convocação da última greve destes, em 19/11/2021 (sucedendo a outras anteriores, concretizadas ou anunciadas), em que estes reivindicavam, para além do «aumento dos salários», «aumento dos postos de trabalho, como fundamental para prestar um serviço de qualidade».

Aliás, já antes não tinha podido deixar de associar esta situação pessoal às declarações de um outro carteiro e dirigente sindical no sector, declarações essas relacionadas com protestos da população contra atrasos na entrega do correio em Arcos de Valdevez (protestos da mesma ordem foram noticiados publicamente em Chaves, Santarém, Leiria e noutros locais do País): «Esta situação arrasta-se há cerca de dois anos. As pessoas foram saindo e a empresa não foi contratando. É preciso preencher os postos de trabalho vagos, que não são preenchidos há muito tempo. Aqui faltam cinco carteiros, o trabalho de onze carteiros está a ser feito por seis.» (Público de 17/08/2021).

«Mas, quase todos os dias, o volume de correio que tinha para entregar, mesmo acelerando tanto quanto pudesse, não «cabia» no horário de trabalho se cumprisse rigorosamente todo o processo estabelecido para a tarefa de o entregar cumprindo os padrões de qualidade deste serviço público.»

Ou quando, já no ano passado (18/01/2020), numa desenvolvida reportagem no jornal semanário Expresso, dirigentes sindicais denunciavam a «falta de funcionários» nos CTT relacionando-a, entre outras razões, com um «plano de transformação operacional» de 2017 do qual resultou que, em três anos, os CTT tenham reduzido o quadro de pessoal em 950 trabalhadores.

Segundo ainda essa reportagem, a falta de prontidão e qualidade do serviço prestado pelos CTT originou já muitas queixas e reclamações à Autoridade Nacional das Comunicações (ANACOM), à DECO e no «Portal da Queixa». Na transcrição, como exemplo, de uma dessas queixas, o seu autor reclama, textualmente, que «o carteiro não tenta entrar em contacto com o destinatário dos bens enviados por correio registado e limita-se a deixar o aviso na caixa de correio sem sequer bater à porta».

A própria Ordem dos Advogados, em 16/7/2020, no seu portal, denunciou situações de perda de qualidade e prontidão no serviço de correios.

Há dias, no Público de 6/11/2021, também o professor Arnaldo Saraiva criticou duramente a perda de qualidade e prontidão do serviço de correios prestado pelos CTT, descrevendo inerentes situações concretas e concluindo: «(…) Esta empresa tornou-se um cancro na vida do país, causa prejuízos diários a centenas de empresas e a milhares de portugueses, pelos quais deveria ser judicialmente penalizada. Mas a irresponsabilidade ou a incompetência com que é gerida justifica uma urgente intervenção política.»

Para quem, nas organizações empregadoras, locais e situações de trabalho, observa e reflecte o que se passa no domínio do emprego e do trabalho (e mais especificamente no das condições de trabalho), não surpreendem estas situações.

Uma das características dos «novos» modelos de gestão que passaram a preponderar (questão a colocar é a de se, desde logo, no que a propósito se ensina quanto a economia e gestão nas respectivas «escolas de negócios») nas últimas décadas é o de a progressiva redução do quadro de pessoal das empresas ser «compensada» com a sobre-intensificação do trabalho (em ritmo e ou em duração) dos trabalhadores que (ainda) lá se mantêm, como meio de estes realizarem (também) o trabalho que os trabalhadores saídos (e não substituídos com a admissão de outros) lá deixaram por (para) fazer.

Não é de espantar que daí, directa ou indirectamente, imediata ou diferidamente, tal venha a ter como consequência a degradação das condições de trabalho, incluindo mesmo, de facto, a diminuição real (ainda que o valor nominal se mantenha) do salário dos trabalhadores por sobre-aumento da duração e/ou do ritmo de trabalho sem o correspondente aumento do salário nominal.

Algo que pode ser pouco perceptível aos cidadãos em geral é o quanto a sobre-intensificação do trabalho que, por várias formas e meios, vem a ser regra há duas ou três décadas na prática dos «novos» modelos de gestão das empresas (e mesmo da Administração Pública) tem por consequência a degradação das condições de trabalho. E, concretamente, a das condições de segurança e saúde do trabalho (muito embora não existam dados para estabelecer esta conexão nos CTT, algo que não se pode descartar é a possibilidade de surtos de covid-19 em locais de trabalho estar relacionado com a intensificação do trabalho e o quanto esta força potencia o afrouxamento de rigor na adopção das medidas comportamentais de prevenção da infecção e do contágio).

Para o bem e para o mal, quando se «mexe, quando por acção ou omissão se compensa ou descompensa organizacionalmente em meios e ou em trabalhadores, nas condições de produção (produtos ou serviços), «mexe-se», melhorando-as ou degradando-as, nas condições de trabalho. E vice-versa, como se desenvolverá mais adiante.

A isto não são alheios os riscos para a segurança e saúde dos trabalhadores. E não «apenas» no quanto a sobre-intensificação do trabalho pode ser causa de acidentes de trabalho, como muitos inquéritos a estes realizados evidenciam. Também, ainda que menos percebido, quanto à saúde dos trabalhadores. Não «só» quanto à saúde física propriamente dita mas, menos percebido ainda, quanto à degradação da saúde mental.

A situação laboral que é denunciada pelos trabalhadores (via sindicatos e não só) como existente nos CTT, com ênfase na preocupação da «falta de funcionários» e consequente sobre-intensificação do trabalho leva à deterioração do que consideram «fundamental», um «serviço de qualidade», constituindo assim o indício de um exemplo do chamado «sofrimento ético laboral», como associado à percepção da desconceituação da profissão e consequente perda do «sentido do trabalho» e da auto-estima profissional e, por implicação, pessoal.

É a vivência quotidiana do dilema ético-profissional (e necessariamente pessoal) de, para lhes ser reconhecido o trabalho (como condição de remuneração e mesmo, eventualmente, de lhes ser mantido o emprego…), os trabalhadores deixam de nesse (outro) trabalho se reconhecerem.

A degradação das condições de trabalho e da organização do trabalho (que, para o bem e para o mal, é indissociável do trabalho da organização), é factor de degeneração do «seu» trabalho como trabalho «bem feito», no sentido da segurança, qualidade e prontidão que o produto ou serviço em causa garante aos seus destinatários (sejam estes utentes ou clientes-consumidores).

Daí decorrendo a impossibilidade de, como trabalhadores, se realizarem profissional e pessoalmente na profissão que exercem e tanto mais, como é o caso, no serviço público em que esta se insira.

Para além disto, outra vertente deste assunto é a de que, seja em que sector for, «o trabalho tem um braço longo». No trabalho e não só, aumentar-se a duração do trabalho não é «apenas», com as mesmas condições, fazer-se a mesma coisa durante mais tempo, acelerar o ritmo de trabalho não é fazer a mesma coisa mais depressa. Em regra, «queimam-se» etapas, altera-se o processo e, por isso, (já) não se faz rigorosamente a mesma coisa. Faz-se outra coisa.

E porque, como sabiamente diz o povo, «depressa e bem há pouco quem», provavelmente faz-se já outra coisa, não só com mais risco para a segurança e saúde de quem trabalha, mas, mesmo do ponto de vista organizacional, com mais risco, pelo menos a médio prazo, para a própria produtividade do ponto de vista de eficácia e eficiência. Mas, sobretudo, mais risco para a segurança, qualidade e prontidão do produto ou serviço, de que o trabalho em causa é meio e tem por fim.

«(...) aumentar-se a duração do trabalho não é "apenas", com as mesmas condições, fazer-se a mesma coisa durante mais tempo, acelerar o ritmo de trabalho não é fazer a mesma coisa mais depressa.»

Enfim, o que pode ser pouco perceptível às pessoas e organizações em geral é o quanto a sobre-intensificação do trabalho e inerente degradação das condições de trabalho na «caixa negra» das empresas (e da Administração Pública), como entidades empregadoras, se lhes pode projectar quanto à relação biunívoca entre trabalho e consumo na sua condição de clientes, utentes, consumidores, cidadãos. Se não na qualidade e segurança do que materialmente (produto ou serviço) consomem, «pelo menos», na prontidão e qualidade do associado atendimento pessoal.

Depois, indissociável do que precede, um outro enfoque talvez ainda mais responsabilizante é o de que se a qualquer empresa, como entidade social (quer como entidade económica, quer como entidade empregadora), é exigível (até como elemento de boa gestão, tal é condicionante de boa inserção e manutenção no mercado, até de marketing) «responsabilidade social», muito mais esta é exigível a uma empresa que presta um serviço público ou um serviço legalmente caracterizado como «essencial».

Isto, no entendimento de que o conceito de «responsabilidade social» não é «apenas» o de garantir o cumprimento estrito da lei (que é o seu patamar mínimo de exigência definidora) mas, mais, o de promover a melhoria das condições de trabalho (nomeadamente quanto a organização, duração e ritmos de trabalho) dos trabalhadores ao seu serviço. Bem como, porque com tal interdependente como se viu, para além de eventuais outras práticas de consideração e respeito pela comunidade/sociedade em que se insere, também a melhoria da segurança, qualidade e prontidão do produto que fornece ou do serviço que presta aos cidadãos na sua actividade económica propriamente dita.

A enveredar-se pelo esvaziamento social (incluído o sociolaboral) ou pela degeneração gestionário-economicista deste conceito de «responsabilidade social» (que assenta no estabelecido em respeitantes normas internacionais), corre-se o risco de se regredir ao limite de que «a responsabilidade social das empresas é obter lucros» (Milton Friedman, 13/9/1970 – The New York Times Magazine).

A ser assim, no caso dos CTT e quanto aos domínios aqui abordados, consequência disso seria concluir-se da degeneração em (mais) lucro do serviço público que a empresa CTT tem por obrigação garantir aos cidadãos e às organizações, como condição da concessão pelo Estado, ainda que agora como empresa privada, do exercício da actividade que desenvolve.

Então, voltando à frase citada no início deste texto, pelo que antecede quanto a qualidade (ou falta desta) do trabalho (condições de trabalho) que garante aos trabalhadores e do serviço de correios que presta aos cidadãos, talvez viesse a ser pertinente propor à administração dos CTT que reformulasse uma conhecida frase publicitária criado por esta empresa há alguns anos: de «meio caminho andado» para o «dobro do caminho andado».


João Fraga de Oliveira / Inspector do Trabalho (aposentado)

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