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Tribunais Arbitrais: Justiça privada, causas públicas e corrupção

O recurso ao Tribunal Arbitral é já uma constante nalgumas concessões. A UTAO, no seu último relatório, aponta que valem já 991 milhões de euros os processos metidos contra o Estado em Tribunais Arbitrais.

Créditos / A Comarca de Arganil

Hoje é um bom dia para voltar a falar do problema dos Tribunais Arbitrais. Porquê? Porque o Expresso anunciou que o actual primeiro-ministro se candidatou a integrar a elite dos «juízes privados», daqueles que pertencem ao pequeno lote – parece que de 200 indivíduos – que podem ir «arbitrar». 

Durante os oito anos que António Costa foi primeiro-ministro, o Estado português perdeu centenas de milhões de euros em processos nos Tribunais Arbitrais. O PCP propôs inúmeras vezes que fosse proibido que o Estado aceitasse que os diferendos com os grandes grupos económicos fossem decididos em tribunais arbitrais. O PS preferiu sempre juntar-se a PSD/CDS/IL/CH, e continuou, não só a permitir essa prática como a integrou em novos contratos que assinou, por exemplo na negociata com o Grupo Champalimaud nos CTT.

O recurso ao Tribunal Arbitral é já uma constante nalgumas concessões. A Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), no seu último relatório, aponta que valem já 991 milhões de euros os processos metidos contra o Estado em Tribunais Arbitrais. Nas PPP rodoviárias, entram novos processos todos os anos. Foi a um Tribunal Arbitral que a ANA foi pedir para ser indemnizada em 300 milhões de euros por causa da pandemia, e isto apesar dos lucros impressionantes que teve desde a privatização (onde, recorde-se, a Vinci já ganhou mais do que aquilo que pagou pela empresa).

Foi a outro Tribunal Arbitral que os CTT foram buscar mais de vinte milhões para «equilibrar a concessão». Foi ainda um Tribunal Arbitral que condenou o Estado português a pagar 202 milhões num caso, e 30 milhões noutro (enquanto decide de um pedido global de 445 milhões), com o Estado condenado, em ambos os casos, por cumprir decisões do Tribunal de Contas. Casos que levaram Manuel Soares, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), a disparar: «Não está certo, não pode estar certo, que o Estado seja condenado por um tribunal arbitral, secreto, sem controlo de legalidade do Ministério Público, a pagar a uma empresa privada centenas de milhões de euros por violação de uma cláusula contratual que o Tribunal de Contas "já tinha considerado nula"».

«Durante os oito anos que António Costa foi primeiro-ministro, o Estado português perdeu centenas de milhões de euros em processos nos Tribunais Arbitrais.»

O alastrar do mesmo princípio que dá origem aos Tribunais Arbitrais foi, por exemplo, o que deu origem ao processo Alexandra Reis (onde a sua indemnização foi decidida por negociação entre as partes e não pela aplicação da Lei) e à indemnização paga a David Neeleman (acertada entre advogados após negociação, sem se preocuparem com a letra da lei). A comoção pública que estes casos geraram deveria ter servido para travar esse tipo de procedimentos. Mas não. A aliança do costume não quis tirar essa conclusão, que o PCP propôs ficasse expressa no Relatório Final, pretensão que foi chumbada por PS, PSD, CH e IL.

Se a justiça privada pode ser aceite para decidir casos entre interesses privados – principalmente se ambas as partes aceitarem recorrer a essa forma de justiça sem qualquer tipo de coação – ela é completamente inaceitável na decisão de processos contra o Estado. Pela sua própria composição (um Tribunal Arbitral são três pessoas, uma escolhida por cada parte, e uma terceira escolhida pelas duas primeiras) e pelo princípios de funcionamento (no fundo, uma negociação que tem em conta a lei mas não se destina a fazer aplicar a lei e da qual não há recurso) estes Tribunais tendem a encontrar soluções que são lesivas para o Estado português. Porquê? Porque o Estado português se põe a jeito, e quem o devia defender está submetido a outro tipo de interesses – sejam eles de classe ou individuais.

«Foi a um Tribunal Arbitral que a ANA foi pedir para ser indemnizada em 300 milhões de euros por causa da pandemia, e isto apesar dos lucros impressionantes que teve desde a privatização (onde, recorde-se, a Vinci já ganhou mais do que aquilo que pagou pela empresa).»

E estes processos são, no mínimo, um convite à corrupção: Num processo hipotético de uma concessionária contra o Estado, esta não tendo direito a nada pede 300 milhões; Se o Tribunal nada lhe der, nada há para distribuir; Se o Tribunal lhe der 50 ou 100 milhões, uma parte é para remunerar os intervenientes no processo; De forma legal (os honorários são muitas vezes calculados com base no tamanho do processo) ou de forma ilegal (através de envelopes, cargos remunerados, convites para outros processos, etc.). Esta é mais uma fonte de corrupção que cresce a olhos vistos. E que só não vê quem tem interesse em não ver.

Os rendimentos dos «árbitros» ultrapassam – no caso dos mais activos – os 150 000 euros por ano, e é perfeitamente justificável que um ex-primeiro-ministro queira aumentar os seus rendimentos pessoais (o salário anual de primeiro-ministro é de cerca de metade daquele valor). Que vá integrar um sector que durante oito anos ele próprio beneficiou e protegeu é o reflexo da actual promiscuidade entre os interesses privados e públicos, e a explicação de muitas das decisões que são tomadas e resultam incompreensíveis.

Que – diz o Expresso – dois reaccionários do calibre de António Lobo Xavier e José Miguel Júdice tenham subscrito a candidatura de António Costa a integrar esse grupo, é também, e só, sinal do verdadeiro tronco onde assenta a reconstrução do capitalismo monopolista em Portugal: o trio PS/PSD/CDS, agora com dois novos penduricalhos, um dos quais finge ser contra o sistema.

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